Passa este ano a redonda idade dos 50 anos desde a madrugada libertadora dos capitães de Abril, “dia inicial, inteiro e limpo”, de que falava a poetisa Sophia de Mello e que ficou cravada na História da nossa contemporaneidade e que devolveu a cidadania, a soberania, a liberdade e a democracia a este país, depois de uma férrea ditadura de quase meio século. E não esqueçamos as razões que levaram à urgência do derrube de um regime decrépito e desacreditado, interna e externamente.
Um país onde predominava a proibição. A exclusão de quem pensava de forma divergente. A interdição de situações que hoje consideramos perfeitamente normais: ler os livros que gostamos, ouvir os discos que apreciamos, ver os filmes que nos apetece; uma mulher entrar numa igreja de cabeça descoberta; uma jovem ir de minissaia para a escola ou de biquíni para a praia; beber uma bebida tão vulgar como a coca-cola; uma mulher casada viajar para o estrangeiro, andar sozinha à noite ou assinar um contrato de trabalho sem necessitar de autorização do marido; usar um isqueiro livremente, sem necessitar de licença; dar beijos em público ou ir de mão dada com a mulher ou o homem que amamos; estar num passeio ou numa esplanada com mais de três amigos, sem que venha a polícia dispersar-nos; fazermos romagens a cemitérios e celebrações da República, do 1º de Maio ou do 25 de Abril sem sermos importunados…
Estes gestos ou situações tão simples e que hoje nem valorizamos, tão incorporadas estão já na nossa identidade individual e colectiva, causaram imensos transtornos e motivaram multas, repressões e prisões até ao ano da graça de 1974.
Os 50 anos do 25 de Abril são comemorados num ambiente de evocação festiva, mas também de profunda apreensão, de preocupação perante os sombrios “sinais dos tempos” que vão surgindo de ataques despudorados à Liberdade, à Tolerância e à Democracia, pondo em causa o espírito que presidiu à Revolução Democrática que tanto nos orgulha.
Estamos a atravessar um lúgubre momento em que ideologias populistas, racistas e xenófobas vão medrando por aí, concretizadas partidariamente em abomináveis padrões de extrema-direita, aproveitando e capitalizando o descontentamento, o protesto e a indignação que a crise económica vai cavando em Portugal, como pelo mundo fora. Quando aparecem problemas não resolvidos, logo aparecem os demagogos a apontar o dedo, a clamar pela “vergonha”, como se não soubessem dizer mais nada. Os extremistas nada têm para oferecer de positivo, de mobilizador, de construtivo. Apenas sabem chafurdar no botabaixismo, no negativismo, no gritar do que está mal. E fazem-no com a mestria de quem é hábil na manipulação mediática e das redes sociais. Catedráticos da demagogia, usam a mentira, a aldrabice, a exploração da ignorância e da vulnerabilidade como estratégia política. E o certo é que há perto de 20% dos portugueses que embarcam, por motivos diversos, da ignorância à idiotice ou a interesses inconfessados, nesses cantos de sereia com presente, mas sem futuro!
É preciso relembrar que o 25 de Abril foi exactamente feito para acabar com o Portugal sombrio, salazarento, bafiento, intolerante, explorador, opressor dos portugueses e dos povos africanos, colonialista, de que muitos parecem nutrir por estes dias saudades, por interesses ou manifesta ignorância. Obviamente só sente saudades destes negregados tempos fascistas quem não os viveu, quem não sofreu, quem não foi vítima de um regime que queria os portugueses cegos, surdos e mudos, e a quem oferecia a pobreza e a falta de liberdade como o pão nosso de cada dia.
É por isso que, em mais um ano que passa e este mais em especial, o 25 de Abril é mais um motivo de reflexão para os mais idosos, os que sofreram os horrores do fascismo, e não esquecem o que era uma sociedade que fazia gala da opressão colectiva, ou para os que de alguma forma festejaram alegremente essa data redentora. É também um motivo de aprendizagem para os mais jovens, os “filhos e os netos de Abril”, que sabem o que foi a tirania do “Estado Novo”, por ouvirem falar ou por lerem, em alguns casos sem a verdade a que têm direito, e tanta ignorância e falsidade circulam por aí, sobretudo nas redes sociais, sem grande credibilidade. E são estes que os populistas captam para as suas estruturas ideológicas radicalizadas.
O 25 de Abril enumera, em cada ano que passa, os grandes desígnios que estiveram bem fixados no programa do Movimento das Forças Armadas, que foi o início da nova ordem política e social: a Democratização, a Descolonização, o Desenvolvimento.
A Descolonização foi cumprida nos anos imediatos a 1974, com a proclamação da independência das colónias, num processo muito controverso que traumatizou milhares de portugueses, mas que terá sido a possível, não a desejável, à época.
A Democratização foi um processo que se foi aperfeiçoando com o tempo e com a adopção de medidas legais e de comportamentos sociais nesse sentido. A Constituição de 1976 foi e é o marco estruturante da nova ordem democrática das últimas quatro décadas. As sucessivas eleições conferem a necessária legitimidade ao exercício do poder político, o que claramente não acontecia até 1974, com arremedos e fraudes eleitorais que nos envergonham. Mais vale uma má democracia que uma boa ditadura.
A promessa dos capitães que se vai cumprindo no dia-a-dia é o Desenvolvimento, um devir que nunca estará completamente realizado, pois a uma necessidade básica se seguirá inevitavelmente uma de segunda ordem e assim sucessivamente, em função da evolução social e colectiva. E num país de fracos recursos, esta tarefa colectiva apresenta-se ainda mais hercúlea.
Para além do triunfo da Democracia, em que os portugueses readquiram a prática da cidadania e do governo para o povo, através do exercício legítimo e regular do voto, que se foi cumprindo nas últimas cinco décadas para os diversos órgãos de soberania, nacionais e locais, o 25 de Abril foi também a promessa de um “país novo”, diferente, baseado na lisura de procedimentos, na honradez, na integridade, na honestidade, na limpeza moral, na incorruptibilidade, na governança virada para o interesse exclusivo das populações, o que nem sempre acontece, infelizmente, por fraquezas humanas e debilidade das instituições.
Meio século depois da madrugada libertadora de 25 de Abril, pode concluir-se que a Democracia é também um acontecer, um exercício a cumprir-se. Não por culpa do seu conceito, da sua ontologia, mas de quem a exerce em cada momento, através do sufrágio universal, e que nem sempre são as pessoas mais honradas, sérias e altruístas.
É claro que as torções à Democracia, não são a Democracia, mas acabam por enodoar o espírito do 25 de Abril. E o 25 de Abril postula necessariamente a prevalência da ética na política, como prática e não mero exercício de retórica!
O 25 de Abril é também o direito a um país limpo, como a um país livre! Politica e moralmente!
Um país sempre a cumprir-se, positivamente. Um 25 de Abril que cada vez mais se impõe e faz sentido, que reforce a Democracia, que garanta as liberdades, que aposte no Desenvolvimento, para tirar os argumentos a quem se nutre demagogicamente apenas das crises, do descontentamento, do atraso!
25 de Abril sempre! E sempre nunca é demais!!!

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“25 de Abril sempre e nunca é...”

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05.05.2024

Passa este ano a redonda idade dos 50 anos desde a madrugada libertadora dos capitães de Abril, “dia inicial, inteiro e limpo”, de que falava a poetisa Sophia de Mello e que ficou cravada na História da nossa contemporaneidade e que devolveu a cidadania, a soberania, a liberdade e a democracia a este país, depois de uma férrea ditadura de quase meio século. E não esqueçamos as razões que levaram à urgência do derrube de um regime decrépito e desacreditado, interna e externamente.
Um país onde predominava a proibição. A exclusão de quem pensava de forma divergente. A interdição de situações que hoje consideramos perfeitamente normais: ler os livros que gostamos, ouvir os discos que apreciamos, ver os filmes que nos apetece; uma mulher entrar numa igreja de cabeça descoberta; uma jovem ir de minissaia para a escola ou de biquíni para a praia; beber uma bebida tão vulgar como a coca-cola; uma mulher casada viajar para o estrangeiro, andar sozinha à noite ou assinar um contrato de trabalho sem necessitar de autorização do marido; usar um isqueiro livremente, sem necessitar de licença; dar beijos em público ou ir de mão dada com a mulher ou o homem que amamos; estar num passeio ou numa esplanada com mais de três amigos, sem que venha a polícia dispersar-nos; fazermos romagens a cemitérios e celebrações da República, do 1º de Maio ou do 25 de Abril sem sermos importunados…
Estes gestos ou situações tão simples e que hoje nem valorizamos, tão incorporadas estão já na nossa identidade individual e colectiva, causaram imensos transtornos e motivaram multas, repressões e prisões até ao ano da graça de 1974.
Os 50 anos do 25 de Abril são comemorados num ambiente de evocação festiva, mas também de profunda apreensão, de preocupação perante os sombrios “sinais dos tempos” que vão surgindo de ataques despudorados à Liberdade, à Tolerância e à Democracia, pondo em........

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