A cidade tem as suas laranjeiras e felicitou-me com a sua presença diária. Dá para os cheiros, para as vistas e até para arrancar com o carro distraído, com algumas no capot, numa espécie de missão informal para as espalhar ainda mais.

De Lisboa até Valência, ou ao longo da bacia do Mediterrâneo, mesmo que não nos apeteça estudar História, percebemos pela paisagem análoga, que também pertencemos a esse mundo, de influência dos árabes que as trouxeram do oriente.

Ao contrário das nespereiras e das figueiras que atacamos vilmente assim que nos aparecem os frutos, porventura cedo demais, mas mesmo a tempo de nos anteciparmos aos vizinhos, nas laranjas bravas ninguém toca. Não sei se é conhecimento biológico ou informação genética, tão pouco me lembro de alguma vez as ter experimentado, mas há o saber coletivo de que não são comestíveis, são amargas.

Contudo, esses pequenos pomares de laranjeiras não deixam de impressionar quem passa pela cidade, desde a periferia, dos percursos migratórios até aos turistas.

Como vizinho de um desses pomares observo o espanto nas suas diversas versões. Os turistas atacam-nas instantaneamente, é uma surpresa de gestos instintivos, quer seja chegar às laranjas apenas esticando o braço ou saltando de imediato para o seu tronco. Já os não-brancos, sejam imigrantes ou portugueses, ficam a uma distância de possível dissimulação, olham para todo o lado para assegurar a inexistência de testemunhas, e só aí esticam o braço, no máximo saltam para as apanhar do galho, mas atacar o tronco é que nunca.

O resultado é sempre o mesmo: perceber que as laranjas não são comestíveis. Mas o mais importante aqui são os processos distintivos.

Observo isto diariamente, e faz-me lembrar a forma como os portugueses, em especial a partir das suas vozes mais mediáticas, se habituaram a achar que são bons integradores e acolhedores. Bons acolhedores desde que o trabalhador negro saia da cidade ao fim do dia e vá para a sua periferia, lá longe onde não o vemos. Desde que pare na passadeira para o carro do branco passar, e, essencialmente, desde que não levante a cabeça e não deixe de ser um “outro” para passar a ser um de nós.

Uma viagem cheia de “se’s”.

Poucos o notam ou declaram, mas a Lisboa pós-colonial tornou-se uma metrópole colonial, na forma e organização das suas gentes. Uma primeira leva deu-se ainda antes do 25 de Abril. Com boa parte da juventude fugida ou na guerra, o Governo português recorreu a “contratados” de Cabo Verde para as suas obras e serviços públicos. Muitos ficaram alojados em estaleiros de obras ou remendaram-se em diversos edifícios abandonados da cidade.

Depois do 25 de Abril, e como consequência da delapidação dos recursos por parte de Portugal dos territórios anteriormente colonizados, mas também das divisões das populações locais fomentadas para fortalecimento do poder colonial, dezenas de milhares, vindos dos novos países independentes, rumaram a Portugal e em especial para a Área Metropolitana de Lisboa.

Aqui, e na falta de alojamento, de um salário de qualidade, e de quem lhes alugasse habitações, improvisaram-nas, autoconstruídas, na periferia da cidade, onde fizeram família, a partir de onde construíram boa parte deste país… democrático.

Construíram com as mãos, mas também oferecendo à metrópole um contínuo de cosmos que a enriqueceu.

Mais tarde, grande parte desses bairros foram realojados, mas mantiveram-se segregados, através da política pública. E foi também assim que o estado contribuiu para um continuum colonial num Portugal democrático.

Na semana em que o Presidente da República voltou a falar, pelo segundo ano consecutivo, em reparações pelo colonialismo, lembro que essas reparações devem e podem ser feitas em vida - como regularmente assinala o activista José Baessa de Pina - nestes territórios periféricos, em Portugal.

Do ponto de vista interno, essa reparação é muito maior do que a revisão dos manuais escolares a partir de uma sala obscura do Ministério da Educação, ou pela inscrição histórica dessa presença nas ruas da cidade e até da devolução do que foi saqueado. Tem de passar por aí. Mas há muito por fazer nos territórios racialmente segregados da Área Metropolitana de Lisboa, que são o fim da linha no que respeita ao acesso de serviços e equipamentos culturais, de saúde, educação, sociais, de desporto e exercício de cidadania.

Reparação começa no acesso ao Portugal democrático, de igualdade e equidade dessas comunidades. E pela valorização máxima da sua potência.

Não sei por vós, mas eu, por mim, não paro enquanto não formos livres da mesma forma que apanhamos laranjas.

Escreve ao abrigo da antiga ortografia.

QOSHE - Colonialismo e reparações - António Brito Guterres
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Colonialismo e reparações

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27.04.2024

A cidade tem as suas laranjeiras e felicitou-me com a sua presença diária. Dá para os cheiros, para as vistas e até para arrancar com o carro distraído, com algumas no capot, numa espécie de missão informal para as espalhar ainda mais.

De Lisboa até Valência, ou ao longo da bacia do Mediterrâneo, mesmo que não nos apeteça estudar História, percebemos pela paisagem análoga, que também pertencemos a esse mundo, de influência dos árabes que as trouxeram do oriente.

Ao contrário das nespereiras e das figueiras que atacamos vilmente assim que nos aparecem os frutos, porventura cedo demais, mas mesmo a tempo de nos anteciparmos aos vizinhos, nas laranjas bravas ninguém toca. Não sei se é conhecimento biológico ou informação genética, tão pouco me lembro de alguma vez as ter experimentado, mas há o saber coletivo de que não são comestíveis, são amargas.

Contudo, esses pequenos pomares de laranjeiras não deixam de impressionar quem passa pela cidade, desde a periferia, dos percursos migratórios até aos turistas.

Como vizinho de um desses pomares observo o espanto nas suas diversas versões. Os turistas atacam-nas instantaneamente, é uma surpresa de gestos........

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