No horizonte desta crónica, três questões. Ou problemas. Ou imagens. Um livro de George Steiner, As Lições dos Mestres, que a Gradiva reedita em hora urgente para a educação; o 25 de Abril e as tentativas de reescrita da História por parte dos que persistem em não entender que Portugal, hoje, em democracia e em liberdade, é outro país e, por fim, as relações entre o livro de Steiner, o 25 de Abril e a educação actual da preocupação por uma geração de adolescentes e jovens adultos que, 50 anos depois, parecem estar mais vulneráveis às investidas de serôdios regimes totalitários e obscurantistas. Um livro, uma data e uma fotografia, portanto. A fotografia, em especial, merece a nossa extrema atenção: mostra um grupo de adolescentes à porta de uma escola de Lisboa, num bairro onde há ainda uma classe média robusta. Uma fotografia alarmante pelo que representa de alienação, pelo que revela acerca de uma realidade que, 50 anos depois de Abril, muitos decisores políticos - sobretudo ministros da Educação - insistem em ignorar ou em dizer que não é a realidade geral das gerações que têm hoje entre os 13 e os 23, 25 anos… Uma fotografia, um livro e uma data neste Directo à Leitura: porque importa mesmo elogiar este livro, reflectir sobre o simbolismo duma época e clamar para que, na educação, haja uma verdadeira acção contra o digital, o veículo que tem empobrecido, deseducado e alienado estudantes, professores, pais e demais comunidade educativa.

O livro de George Steiner tem prefácio de Maria do Carmo Vieira, uma das vozes que, nos últimos 20 a 25 anos mais empenhadamente tem denunciado os sucessivos absurdos das reformas levadas a cabo pela Tutela. É por esse prefácio que qualquer professor deve começar a ler este livro de Steiner. Livro, diga-se desde já, que deveria ser de leitura basilar em todos os cursos de formação de professores. A autora do prefácio faz coincidir a primeira edição deste livro no nosso país - em 2003 - com a reforma curricular que seguiu as modas americanas e de outros países europeus. Uma reforma fruto da “mudança irreflectida” que desestabilizou a profissão docente e que teve por base quer as “atabalhoadas definições de perfis (de alunos e professores)”, quer a liberdade (?) de as escolas poderem alterar “em desfavor de algumas disciplinas, o número de horas lectivas, nomeadamente em História, uma das mais massacradas da área de humanidades, a par da Geografia.” (p.11). Tal como George Steiner irá comprovar nos capítulos por que se estrutura este seu livro, há uma tese que Maria do Carmo Vieira logo expõe como âncora de todos estes textos: com essas reformas, as humanidades não escaparam à “loucura do discurso pragmático”. Essa reforma de 2003 foi “o culminar de um trabalho paciente, orientado por pedagogos frustrados […] que doentiamente dependentes de teorias pedagógicas, há muito postas em causa, contaram com a anuência de direcções escolares para a execução da mudança que, a seu ver, revolucionaria o sistema educativo” (p.12).

Uma mudança que teve no discurso da “inovação/ novo”, no “funcional/ utilitário” e na “facilidade/ lúdico” as traves-mestras. Hoje, volvidos vinte anos, ao irmos às escolas falar sobre os 500 anos de Camões, ou sobre a importância de uma data como a do 25 de Abril, vemos bem as consequências das sucessivas reformas inovadoras, utilitárias e fáceis levadas a cabo por governos do PSD e do PS: os alunos (e mesmo muitos professores, sobretudo se têm menos de 40 anos) ignoram quem foi Camões, deparam-se com dificuldades extremas de redacção e de interpretação de textos literários (de Camões ou de quaisquer outros, do 7º ao 12º ano).

Com efeito, à custa da imposição de um paradigma tecnológico que atingiu todas as disciplinas, com a estúpida crença de que só importam as áreas que darão “lucro” no mercado de trabalho para onde encaminhamos uma geração inteira de indigentes digitais (os que serão engenheiros, informáticos, médicos, advogados, arquitectos?), o facto é este: hoje muitos alunos não sabem pegar numa caneta, têm uma caligrafia ilegível, a sintaxe que produzem é de uma ilogicidade que magoa o pensamento. A morfologia, a semântica e mesmo a fonética (quando lêem em voz alta é assustador ver com que tropeções e hesitações lêem um poema ou uma simples apresentação do palestrante) espelham a catástrofe que inúmeros professores, de vários graus de ensino, têm descrito. A menorização dos clássicos, bem como o convite permanente a que os professores sejam os agentes desta “transição digital” que nada mais fará senão destruir definitivamente a escola e o ensino no seu todo, isso está plasmado neste A Lição dos Mestres. Um dado para o debate: por que razão uma peça teatral como Felizmente há Luar! de Sttau Monteiro foi retirada do 12º ano sem que nos dissessem as razões para tal censura? A quem convém que as crianças e os adolescentes prefiram jogos online no telemóvel à leitura de livros que podem, de facto, mover os afectos e comover a inteligência? A quem convém que as humanidades sejam perseguidas por direcções escolares e que disciplinas como Literatura/Português, História e Geografia, Artes e Música sejam permanentemente desvalorizadas? Será que os senhores adeptos das tecnologias e das ciências não leram Einstein? Relembremo-lo: “oponho-me à ideia de que a escola deve ensinar directamente aqueles conhecimentos específicos que viremos a empregar mais tarde na nossa vida. As exigências da vida são demasiadamente variadas para que seja viável esse ensino específico e directo. Parece-me, à parte isso, condenável tratar o indivíduo como uma ferramenta morta. A escola deve ter como objectivo que os seus alunos saiam dela com uma personalidade harmoniosamente formada, e não como meros especialistas.” (p.13)

Ao cenário actual - o Sr. Ministro da Educação que visite sem aviso prévio uma qualquer escola da periferia de Lisboa, porventura a Escola Secundária de Mem-Martins, em Sintra, e vá ver, com os seus olhos, e sem se identificar, como falam os alunos, de que falam, como estão deitados nos corredores, ou a ofenderem-se mutuamente durante os intervalos. Entre numa sala de aula e veja a dificuldade dos professores em disciplinar para haver uma atmosfera de concentração para ler textos. Que tenha consciência, como outros antes de si não tiveram do facto indesmentível: a diluição das humanidades é proporcional ao recrudescimento da violência escolar e dos péssimos resultados que Portugal hoje apresenta em organismos internacionais. Os alunos que hoje vegetam nos nossos estabelecimentos de ensino - todos de telemóvel em punho, olhar mortiço, ignorantes de tudo - são o país do futuro, esse que matará o espírito de Abril, pois que na escola foi o próprio espírito que foi assassinado. Tudo isto é realidade no ensino público, decerto. Mas o cenário não é melhor no privado. Nenhum Cheque-Ensino resolverá um problema que atinge já todas as classes sociais: o problema profundo do desinteresse pela cultura letrada. E, perguntemos, que engenheiros, advogados, arquitectos, professores, políticos e empresários teremos em 2050 se persistirmos numa política - como Steiner lhe chama - que despreza palavras como “instrução”, “espírito”, “erotismo”?

Tenho ido a diversas escolas por estes dias de lembrar Abril e Camões. Apesar da boa-vontade e verdadeiro espírito de missão de inúmeros professores, o que é gritante é o modo como agem e falam os alunos. A atmosfera geral é de pré-delito. O olhar de muitos é revelador: entre a desconfiança e a irritação por ver que é de livros e de poesia que se vai falar, gradualmente dando lugar à surpresa, à inquietação que a literatura e as artes sempre acabam por promover. Há excepções? Há. São muitas? Algumas. Um outro dado: à medida que nos afastamos das escolas de Lisboa constatamos que é nos ambientes menos urbanos que ainda existe certa disponibilidade dos estudantes para ouvirem, para escreverem enquanto decorre a comunicação. Mas nada disso acontece sem que sejamos incisivos e lhes façamos a pergunta: “A quem convém que vos tenham assassinado o saber estar e ser na escola como na vida? A quem convém que vocês, em 2024, nada saibam de História, de Geografia e de Português e tenham como únicos interesses o TikTok, as redes sociais, e estejam à mercê dos influencers?” Por que razão roubámos aos nossos estudantes a imaginação sem a qual não há esse erotismo próprio da transmissão - essa de que fala Steiner?

Indo a escolas de Norte a Sul do país, e também a colégios e universidades, não posso alinhar com os discursos do “rigor e da excelência” que, em efemérides, a Tutela gosta de pronunciar. Sim, é certo que Portugal não é hoje, em 2024, o país de miséria, esse território de guerra e de asfixia de Salazar-Caetano, onde quem tinha dinheiro é que estudava e quem não tinha estava condenado a uma vida sem magia. Porém, se as aulas e a escola actuais são uma linha de montagem onde todos, no digital, são incapazes de saber escrever e incapazes de fruir dum texto por manifesta iliteracia, não é de asfixia que devemos falar? Quando uma data como Abril de 74 pouco ou nada lhes diz, quando o ensino é vítima da “fúria censória” (excelente imagem da prefaciadora ao livro de Steiner) das tecnologias que alienam; quando nomes como Mário Soares, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, Sá-Carneiro; Salgueiro Maia, Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço ou poetas e escritores e artistas, maioria pessoas que foram opositores ao fascismo, são nomes jamais ouvidos e os livros (romances, teatro, poemas - ou as pinturas e músicas dados da cultura - que pertence aos alunos!) lhe aparece como um imenso Nada - não é de obscurantismo que devemos falar?

E regresso ao livro de George Steiner: “O mau ensino, a rotina pedagógica, esse tipo de instrução que é cínico nos seus objectivos puramente utilitários, é ruinoso. Arranca a esperança pela raiz. O mau ensino é literalmente criminoso e, metaforicamente, um pecado. Derrama sobre a sensibilidade da criança ou do adulto o mais corrosivo dos ácidos: o tédio, o metano do ennui. Para milhões de pessoas a matemática, a poesia, a filosofia, foram destruídos por um ensino inane, pela mediocridade, talvez subconscientemente vingativa, dos pedagogos frustrados.” (p.41). É um livro implacável e sensato, escrito para pais e professores (também eles pais). Escrito para Ministros da Educação e Reitores de Universidades e Directores de Escolas e de Colégios. Celebramos este ano os 50 anos do 25 de Abril e falamos de liberdade, da urgência de defender a democracia contra a barbárie… Mas é nas escolas que a barbárie tem sido semeada: a extrema-direita germina aí, nessa geração que, refém do digital, sem linguagem, sem poesia, sem imaginação, mergulhará na noite mais escura porque já não teve as lições de quaisquer mestres. Como vemos na fotografia tirada frente à entrada dum estabelecimento de ensino, o 25 de Abril para os que estudam hoje na escola portuguesa é estar deitado nos passeios, com ecrãs onde o fascínio fácil do vazio corresponde ao fascismo como ódio à cultura, ao ensino com livros. A tudo quanto significa ser-se livre.

QOSHE - 50 anos de Abril, um livro e uma fotografia - António Carlos Cortez
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50 anos de Abril, um livro e uma fotografia

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27.04.2024

No horizonte desta crónica, três questões. Ou problemas. Ou imagens. Um livro de George Steiner, As Lições dos Mestres, que a Gradiva reedita em hora urgente para a educação; o 25 de Abril e as tentativas de reescrita da História por parte dos que persistem em não entender que Portugal, hoje, em democracia e em liberdade, é outro país e, por fim, as relações entre o livro de Steiner, o 25 de Abril e a educação actual da preocupação por uma geração de adolescentes e jovens adultos que, 50 anos depois, parecem estar mais vulneráveis às investidas de serôdios regimes totalitários e obscurantistas. Um livro, uma data e uma fotografia, portanto. A fotografia, em especial, merece a nossa extrema atenção: mostra um grupo de adolescentes à porta de uma escola de Lisboa, num bairro onde há ainda uma classe média robusta. Uma fotografia alarmante pelo que representa de alienação, pelo que revela acerca de uma realidade que, 50 anos depois de Abril, muitos decisores políticos - sobretudo ministros da Educação - insistem em ignorar ou em dizer que não é a realidade geral das gerações que têm hoje entre os 13 e os 23, 25 anos… Uma fotografia, um livro e uma data neste Directo à Leitura: porque importa mesmo elogiar este livro, reflectir sobre o simbolismo duma época e clamar para que, na educação, haja uma verdadeira acção contra o digital, o veículo que tem empobrecido, deseducado e alienado estudantes, professores, pais e demais comunidade educativa.

O livro de George Steiner tem prefácio de Maria do Carmo Vieira, uma das vozes que, nos últimos 20 a 25 anos mais empenhadamente tem denunciado os sucessivos absurdos das reformas levadas a cabo pela Tutela. É por esse prefácio que qualquer professor deve começar a ler este livro de Steiner. Livro, diga-se desde já, que deveria ser de leitura basilar em todos os cursos de formação de professores. A autora do prefácio faz coincidir a primeira edição deste livro no nosso país - em 2003 - com a reforma curricular que seguiu as modas americanas e de outros países europeus. Uma reforma fruto da “mudança irreflectida” que desestabilizou a profissão docente e que teve por base quer as “atabalhoadas definições de perfis (de alunos e professores)”, quer a liberdade (?) de as escolas poderem alterar “em desfavor de algumas disciplinas, o número de horas lectivas, nomeadamente em História, uma das mais massacradas da área de humanidades, a par da Geografia.” (p.11). Tal como George Steiner irá comprovar nos capítulos por que se estrutura este seu livro, há uma tese que Maria do Carmo Vieira logo expõe como âncora de todos estes textos: com essas reformas, as humanidades não escaparam à “loucura do discurso pragmático”. Essa reforma de 2003 foi “o culminar de um trabalho paciente, orientado por pedagogos frustrados […]........

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