Como deve a Ucrânia lidar com o risco real de ficar sem apoio norte-americano e europeu para resistir ao invasor russo? Deve Kiev começar a cenarizar, com seriedade, uma eventual cedência de parte do território? Para já, pelo menos, não.

A Ucrânia prepara uma nova fase da guerra. Já não dá muito para desvalorizar, muito menos disfarçar: a Ucrânia está com falta de mísseis antiaéreos. Os ataques aéreos em larga escala da Rússia, agravados no último mês, deixaram a Ucrânia com falta de munições capazes de travar com elevada eficácia os mísseis e drones enviados pela Rússia. David Cameron pôs o dedo na ferida: o conflito entre Israel e Hamas “está a desviar a atenção da Ucrânia”.

O apoio ocidental continua a ser decisivo - mas pode ter os dias contados, pelo menos na dimensão que conheceu até aqui. Zelensky tem feito tudo para o manter vivo - e não perdeu a esperança: “Os contactos internacionais que faremos nos próximos dias vão fortalecer as nossas posições na Europa, quanto à relação com a União Europeia, os nossos vizinhos e as instituições internacionais. Estão a ser preparados novos pacotes de apoio militar. Quando a semana acabar, poderemos dizer que a Ucrânia saiu fortalecida. É essencial que existam mais acordos nas nossas relações bilaterais a cada semana, bem como um aumento no fornecimento de armas, munições e veículos”.

A Ucrânia continua a ter a ajuda ocidental como plano A. Mas está, cada vez mais, a preparar o plano B: resistir sozinha.

A visita do novo (e regressado) primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, a Kiev, no passado dia 22, serviu para anunciar um plano de cooperação entre os dois países na produção de armamento e munições. A Rheinmetall, alemã, vai abrir uma fábrica na Ucrânia onde irá produzir veículos blindados e onde fará também a manutenção dos tanques de Kiev. O prazo para começar a operar é de 12 semanas. Ucrânia e Dinamarca discutiram recentemente produção conjunta de drones. E os F-16 dinamarqueses para a Ucrânia devem chegar na primavera. Zelensky volta a mostrar otimismo: “A produção ucraniana de armas e projéteis apresenta uma dinâmica positiva.”

A Ucrânia produziu três vezes mais equipamentos e armas em 2023 em comparação com 2022. A estatal Ukroboronprom (Indústria de Defesa Ucraniana) aumentou a sua produção em 62 por cento. Mas pode não chegar: a Rússia prepara aumento de 67,6% para a Defesa no período 2024-26, um terço da despesa total e um valor recorde e que supera, pela primeira vez, os gastos sociais.

“Os Estados Unidos não precisarão de enviar grande ajuda de segurança à Ucrânia indefinidamente se a Ucrânia conseguir produzir as suas armas”, sustenta relatório divulgado na semana passada pelo Instituto para os Estudos da Guerra (ISW). “As perspetivas da Ucrânia de sustentar as suas forças militares com assistência limitada a longo prazo são excelentes. A Ucrânia é fortemente industrializada, com uma população altamente qualificada e tecnicamente sofisticada. Teve uma enorme indústria de armas durante o período soviético e continuou a ser um importante exportador de armas após a independência”, assinala o documento do ISW.

A próxima quinta-feira, 1 de fevereiro, vai ajudar-nos a perceber em que ponto estamos verdadeiramente no que à ajuda à Ucrânia diz respeito. A reunião extraordinária do Conselho Europeu tentará resolver o que não se conseguiu desbloquear a 14 e 15 de dezembro.

A União Europeia admite cortar no financiamento à Hungria se Budapeste continuar a bloquear o apoio financeiro à Ucrânia. Bruxelas terá desenhado um plano com uma estratégia para visar a economia húngara, que passará por diminuir a confiança dos investidores, se o país continuar a vetar o plano da UE de ajuda à Ucrânia a partir do orçamento plurianual.

Na contagem decrescente para o Conselho Europeu extraordinário, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, tem-se mostrado contra a mobilização de 50 mil milhões de euros em ajuda financeira para a Ucrânia. Bluff ou insistência imprudente?

Caso se confirme o veto húngaro, estará a preparar-se uma reação em cadeia de líderes europeus a anunciarem que o comportamento de Orbán não se coaduna com a possibilidade de a Hungria continuar a receber os fundos europeus. Uma decisão que poderia ter consequências muito significativas para Budapeste: os mercados financeiros e as empresas europeias e internacionais podem ficar menos interessado em investir na Hungria, o que pode provocar um aumento do custo do financiamento do défice público e uma desvalorização da moeda.

O Mecanismo para a Ucrânia deverá prever 50 mil milhões de ajuda para proporcionar estabilidade a longo prazo a Kiev - tema prioritário num conjunto de pontos que também incluem a migração e a dimensão externa, os pagamentos de juros do NextGenerationEU. Num quadro global de negociação que prevê uma dotação financeira adicional de 64,6 mil milhões de euros, a fatia de leão deverá ir para a Ucrânia (17 mil milhões de euros em subvenções e 33 mil milhões de euros em empréstimos), sendo que dois mil milhões de euros deverão ser destinados para a migração e a gestão das fronteiras; 7,6 mil milhões de euros para a vizinhança e o mundo; 1,5 mil milhões de euros para o Fundo Europeu de Defesa no âmbito do novo instrumento STEP; 2 mil milhões de euros para o Instrumento de Flexibilidade e 1,5 mil milhões de euros para a Reserva para a Solidariedade e as Ajudas de Emergência.

O Mecanismo para a Ucrânia visa conceder um apoio coerente à Ucrânia na reconstrução do país no contexto dos desafios sem precedentes causados pela guerra de agressão da Rússia. Ao mesmo tempo, o apoio ajudará a Ucrânia a levar por diante as reformas e os esforços de modernização necessários para avançar na sua via para a futura adesão à UE.

Que não se pense que as decisões de quinta-feira são fundamentais apenas para a Ucrânia. Também o serão para o projeto europeu. Um triunfo imperial da Rússia na invasão começada a 24 de fevereiro de 2022 seria o fim da construção europeia enquanto a conhecemos até agora.

Não é que o apoio dos Estados-membros esteja a cair em bloco. Pelo contrário: olhemos para Itália. Meloni terá pedido a Orbán para a Hungria apoiar nova ajuda à Ucrânia. A primeira-ministra italiana tem instado o homólogo húngaro a aprovar o pacote de 50 mil milhões. E a câmara baixa do Parlamento italiano aprovou há dias o prolongamento do apoio à Ucrânia.

Alexander De Croo, primeiro-ministro da Bélgica, país que assume a presidência rotativa da UE, garante que União Europeia vai “aumentar ainda mais o seu apoio à Ucrânia”.

Será?

Nas horas seguintes ao maior ataque russo sobre as cidades ucranianas desde o início da guerra em larga escala, realizado a 29 de dezembro de 2023, Olena Zelenska, primeira-dama ucraniana, colocou o dedo na ferida: “A realidade da guerra só pode ser alterada com mais armas.”

Estarão os líderes europeus à altura do momento existencial que vivemos? Terão eles capacidade política para explicarem aos seus eleitorados que é mesmo o futuro da Europa que está em causa nos próximos meses?


Especialista em Política Internacional

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A Ucrânia resistirá: mesmo sozinha?

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30.01.2024

Como deve a Ucrânia lidar com o risco real de ficar sem apoio norte-americano e europeu para resistir ao invasor russo? Deve Kiev começar a cenarizar, com seriedade, uma eventual cedência de parte do território? Para já, pelo menos, não.

A Ucrânia prepara uma nova fase da guerra. Já não dá muito para desvalorizar, muito menos disfarçar: a Ucrânia está com falta de mísseis antiaéreos. Os ataques aéreos em larga escala da Rússia, agravados no último mês, deixaram a Ucrânia com falta de munições capazes de travar com elevada eficácia os mísseis e drones enviados pela Rússia. David Cameron pôs o dedo na ferida: o conflito entre Israel e Hamas “está a desviar a atenção da Ucrânia”.

O apoio ocidental continua a ser decisivo - mas pode ter os dias contados, pelo menos na dimensão que conheceu até aqui. Zelensky tem feito tudo para o manter vivo - e não perdeu a esperança: “Os contactos internacionais que faremos nos próximos dias vão fortalecer as nossas posições na Europa, quanto à relação com a União Europeia, os nossos vizinhos e as instituições internacionais. Estão a ser preparados novos pacotes de apoio militar. Quando a semana acabar, poderemos dizer que a Ucrânia saiu fortalecida. É essencial que existam mais acordos nas nossas relações bilaterais a cada semana, bem como um aumento no fornecimento de armas, munições e veículos”.

A Ucrânia continua a ter a ajuda ocidental como plano A. Mas está, cada vez mais, a preparar o plano B: resistir sozinha.

A visita do novo (e regressado) primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, a Kiev, no passado dia 22, serviu para anunciar um plano de cooperação entre os dois países na produção de armamento e munições. A Rheinmetall, alemã, vai abrir uma fábrica na Ucrânia onde irá produzir veículos blindados e........

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