A agressão russa da Ucrânia, quase a chegar ao 800.º dia, está num momento de viragem. A aprovação - tardia, mas fundamental - do pacote de ajuda norte-americana permitiu que os ucranianos voltassem a acreditar que é possível resistir ao invasor.

Mas ainda há tanto a fazer.

É tempo de terminar o tempo das ilusões: primeiro foi a ilusão de que não ia haver invasão russa, em que tanta gente quis acreditar nos dias que antecederam 24 de fevereiro de 2022; depois a ilusão de que a guerra iria ser breve (uns dias, talvez semanas… e já vamos em dois anos e dois meses); mais tarde a ilusão de que a Rússia de Putin era influenciável (tantos crentes que ainda há no “apaziguamento”).

Quase 800 dias depois, e como bem sentenciou Mykhailo Podolyak, principal conselheiro político de Zelensky, em recente entrevista ao Expresso, nada disso se confirmou. Convém substituirmos as ilusões por um quadro de sentimentos e perceções bem mais realista: “Temos de perder a ilusão de que podemos pacificar o agressor, negociar com o Irão ou com a Rússia.”

A hora é, por isso, de passar ao pragmatismo.

No terreno, a Rússia ainda tem uma vantagem significativa. É de esperar que nas próximas semanas essa situação possa mudar, tendo em conta a rapidez com que, depois da aprovação na Câmara dos Representantes, a Administração Biden foi capaz de promulgar a ratificação do Senado e ativar um primeiro pacote, já integrado no grande bolo dos 61 mil milhões de dólares, de perto de 10% do total, contendo munições para os sistemas de defesa aérea HIMARS, NASAMS e Patriot, naquele que é o maior pacote individual de ajuda de sempre à Ucrânia.

Era desse sinal que a Ucrânia precisava.

O desbloqueio teve, de resto, um efeito dominó na aceleração de decisões do Reino Unido (580 milhões, maior pacote inglês também), da Dinamarca (420 milhões), de Espanha (fornecerá uma bateria Patriot) e da Bélgica (que prometeu fornecer F16 ainda durante este ano de 2024).

Voltar a ter armamento é necessário, mas não suficiente. É preciso continuar a ter homens para combater. Numa guerra de longo prazo como esta, isso pode ser decisivo para a Ucrânia.

Kiev decidiu banir temporariamente a emissão e renovação de passaportes para homens entre os 18 e os 60 anos que se encontrem no estrangeiro. Dmytro Kuleba já tinha deixado uma crítica aos homens ucranianos que vivem fora do país e que não se mostram disponíveis para servir as Forças Armadas. “Permanecer no estrangeiro não isenta um cidadão dos seus deveres para com a pátria.”

Depois de ter sido nomeado em março, Oleksandr Yakovets foi demitido do cargo de comandante das Forças de Apoio das Forças Armadas ucranianas. Yakovets tinha sido nomeado a 4 de março e vai agora liderar o Serviço Especial de Transporte da Ucrânia.

O Kremlin sabe que estamos a entrar numa nova fase e, nos últimos dias, não conseguiu disfarçar a inquietação.

As forças russas voltaram a bombardear a linha ferroviária na Ucrânia para evitar passagem de comboio com armas ocidentais (uma atitude que nos faz lembrar os primeiros dias de guerra). Moscovo tem feito uma série de ataques nas ferrovias ucranianas, com o objetivo de paralisar as entregas, o transporte de carga militar. As forças russas destacaram ainda dois porta-mísseis submarinos em serviço de combate no Mar Negro, que podem equipar até oito mísseis Kalibr.

No terreno, a Rússia insiste em atacar as infraestruturas energéticas de várias cidades ucranianas e prossegue a sua estratégia de fazer de Kharkiv uma espécie de nova Mariupol, tamanha é a destruição e isolamento de zonas habitacionais.

A pouco mais de uma semana de tomar posse para quinto mandato (longevidade só aceitável em países não-democráticos), Vladimir Putin fez saber que conta fazer na China a sua primeira viagem oficial após esse momento. A Rússia está pronta para aumentar cooperação militar com o Irão, afirmou o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, após um encontro com o seu homólogo iraniano.

Ou seja: dias depois da renovação do apoio dos EUA à Ucrânia, secundado por novas ações de Aliados Europeus, a Rússia faz questão de mostrar que tem o alinhamento autocrático bem oleado e mantém condições de continuar a sua agressão sobre o vizinho.

Em discurso na Sorbonne, Macron voltou a ser dramático. O que não significa que tenha sido exagerado ou, sequer, alarmista.

O presidente da França apontou que a guerra na Ucrânia é o “principal perigo para a segurança da Europa”: “Como é que podemos construir a nossa soberania, a nossa autonomia, se não assumimos a responsabilidade de desenvolver a nossa própria Indústria Europeia de Defesa? Existe o risco de a nossa Europa morrer. Não estamos preparados, nem equipados para enfrentar os riscos. Não há defesa sem uma Indústria de Defesa … tivemos décadas de desinvestimento. Devemos ser claros hoje sobre o facto de que a nossa Europa é mortal, pode morrer; depende apenas das nossas escolhas, mas estas escolhas têm de ser feitas agora”, porque “na próxima década, (…) há um enorme risco de sermos enfraquecidos ou mesmo relegados”.

Macron propôs a criação de um “conceito estratégico para uma defesa europeia credível” face às ameaças externas, nomeadamente da Rússia. “Temos de produzir mais, temos de produzir mais rápido, e temos de produzir como europeus.”

Há anos que o líder do Eliseu tem desenvolvido a necessidade de uma autonomia estratégica europeia. Macron voltou a abordar o conceito, lembrando que a Europa não pode estar totalmente depende do apoio militar dos EUA e “deve ser capaz de falar com outras áreas do globo, outras geografias e sensibilidades”.

A viagem do secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken à China reforçou a ideia de que a Administração Biden não vai desistir de responsabilizar o seu rival estratégico, na forma como Pequim tem apoiado Moscovo a prosseguir a agressão na Ucrânia.

A deslocação aconteceu pouco depois de uma conversa entre o presidente dos EUA, Joe Biden, e o líder chinês, Xi Jinping, e de uma visita semelhante à China da secretária do Tesouro norte-americano, Janet Yellen.

“Se a China pretende, por um lado, manter boas relações com a Europa e outros países, não pode, por outro lado, estar a alimentar aquela que é a maior ameaça à Segurança Europeia desde o fim da Guerra Fria”, aponta Blinken. “A Rússia teria dificuldades em manter o seu ataque à Ucrânia sem o apoio da China, que está assim a alimentar uma guerra brutal. A China é o principal fornecedor de máquinas-ferramentas, propulsores de foguetes e outros produtos de dupla utilização que Moscovo está a utilizar para aumentar a sua base industrial de Defesa”.

Os EUA preparam sanções que podem excluir do Sistema Financeiro Global alguns bancos chineses envolvidos na ajuda à Rússia. Blinken já tinha deixado o aviso, em Capri, durante uma reunião do G7, na semana passada. “A China não pode ter as duas coisas. Não pode pretender ter relações amigáveis positivas com os países da Europa e, ao mesmo tempo, alimentar a maior ameaça à Segurança Europeia desde o fim da Guerra Fria.”

QOSHE - Das ilusões ao pragmatismo - Germano Almeida
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Das ilusões ao pragmatismo

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28.04.2024

A agressão russa da Ucrânia, quase a chegar ao 800.º dia, está num momento de viragem. A aprovação - tardia, mas fundamental - do pacote de ajuda norte-americana permitiu que os ucranianos voltassem a acreditar que é possível resistir ao invasor.

Mas ainda há tanto a fazer.

É tempo de terminar o tempo das ilusões: primeiro foi a ilusão de que não ia haver invasão russa, em que tanta gente quis acreditar nos dias que antecederam 24 de fevereiro de 2022; depois a ilusão de que a guerra iria ser breve (uns dias, talvez semanas… e já vamos em dois anos e dois meses); mais tarde a ilusão de que a Rússia de Putin era influenciável (tantos crentes que ainda há no “apaziguamento”).

Quase 800 dias depois, e como bem sentenciou Mykhailo Podolyak, principal conselheiro político de Zelensky, em recente entrevista ao Expresso, nada disso se confirmou. Convém substituirmos as ilusões por um quadro de sentimentos e perceções bem mais realista: “Temos de perder a ilusão de que podemos pacificar o agressor, negociar com o Irão ou com a Rússia.”

A hora é, por isso, de passar ao pragmatismo.

No terreno, a Rússia ainda tem uma vantagem significativa. É de esperar que nas próximas semanas essa situação possa mudar, tendo em conta a rapidez com que, depois da aprovação na Câmara dos Representantes, a Administração Biden foi capaz de promulgar a ratificação do Senado e ativar um primeiro pacote, já integrado no grande bolo dos 61 mil milhões de dólares, de perto de 10% do total, contendo munições para os sistemas de defesa aérea HIMARS, NASAMS e Patriot, naquele que é o maior pacote individual de ajuda de sempre à Ucrânia.

Era desse sinal que a Ucrânia precisava.

O desbloqueio teve, de resto, um efeito dominó na aceleração de decisões........

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