“Não há consenso hoje para enviar tropas terrestres de forma oficial, assumida e endossada. Mas, dinamicamente, nada deve ser excluído. Faremos tudo o que for necessário para garantir que a Rússia não possa vencer esta guerra”
EMMANUEL MACRON. Presidente da França, após a reunião de Paris, 26 fevereiro 2024

“Nenhum soldado da Europa ou da NATO será enviado para a Ucrânia”
OLAF SCHOLZ. Chanceler da Alemanha, em reação às palavras de Macron, 27 fevereiro 2024

Nos dias que sucederam à invasão russa da Ucrânia, Joe Biden foi claro no apoio à Ucrânia e garantiu que a América iria fazer tudo, “no tempo que fosse preciso”, para travar a agressão russa e proteger Kiev.
Esse apoio do presidente dos EUA - hoje bloqueado por republicanos isolacionistas e de vistas curtas no que verdadeiramente está em causa para a posição da América na liderança global - foi fundamental para a Ucrânia resistir. Foi a decisão correta, mas não ficou isenta de erros. É que Biden, na mesma altura, também deixou claro que não colocava como cenário o envio de tropas norte-americanas para solo ucraniano. Isso foi encarado como um posicionamento prudente, para evitar um confronto direto EUA-Rússia (“seria a III Guerra Mundial”, alegou Biden). Mas terá sido um erro estratégico grave: ao excluir por completo essa possibilidade, o presidente dos EUA deixou campo demasiado aberto ao agressor russo, que assim pôde ir escalando a invasão em solo ucraniano, a ponto de ameaçar o flanco leste da NATO.

Ao assumir, de viva voz, que “não podemos excluir um cenário de envio de tropas ocidentais para defender a Ucrânia”, ainda que o coloque como a última das possibilidades, Macron sinaliza que o grau da ameaça russa sobre espaço europeu e território NATO nunca foi tão grande.

Esses alertas foram dados, nas últimas semanas, por analistas militares e relatórios de serviços de informação de países do flanco leste. Mas assumido assim pelo presidente da França constitui, se olharmos com frieza, um dos momentos mais graves desde 24 de fevereiro de 2022.

Macron elencou “cinco categorias de ação” nas quais as autoridades europeias concordaram em investir recursos: “Ciberdefesa, coprodução de armas e munições na Ucrânia, a defesa dos países diretamente ameaçados pela Rússia, em particular, a Moldova, e a capacidade de apoiar a Ucrânia na sua fronteira com a Bielorrússia e em operações de desminagem”.

É preciso analisar com a devida perspetiva: Macron não descartou o envio de forças militares para a Ucrânia, embora tenha reconhecido que neste momento não há consenso a esse respeito. O conceito chave para percebermos a investida do presidente francês é “ambiguidade estratégica”: “Não disse de todo que a França não era a favor disso”.

Macron é um forte defensor de uma maior autonomia europeia e gostaria de ver as potências europeias, incluindo o Reino Unido, pensarem de forma mais estratégica sobre como ajudar a Ucrânia no caso de Donald Trump ser eleito presidente dos EUA e sair da NATO ou acabar com o apoio militar à Ucrânia.

Sikorski, ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, foi ao ponto: os aliados do Ocidente devem aumentar a ajuda à Ucrânia, de modo a evitar que os combates se espalhem pela Europa. “Precisamos de tomar estas medidas não para agravar a guerra na Ucrânia, mas para evitar um conflito global ainda maior, que atualmente se aproxima cada vez mais das nossas fronteiras”. E o chefe da diplomacia de Varsóvia apontou ao risco da perda da coesão transatlântica: “Se a América não conseguir unir-se à Europa e permitir que a Ucrânia faça recuar Putin, a família de nações democráticas pode começar a “desintegrar-se”.

Não foi preciso esperar muito para que o aviso de Macron fosse contraposto pelas cautelas de Scholz. O chanceler alemão, horas depois, alegou: armas, munições e defesa aérea para a Ucrânia - mas sem tropas dos países europeus e da NATO em palco ucraniano. A gestão de relação com Moscovo, típica de Berlim nas últimas décadas, ficou bem visível, no momento de uma eventual escalada (nem que fosse apenas retórica).

Scholz lançou o mote, outros líderes europeus e até a Casa Branca consumaram a travagem à ideia de Macron: tropas ocidentais para a Ucrânia, não. O recado tinha um destinatário claro: o Kremlin.

Mais de dois anos depois da Rússia de Putin se ter transformado num agressor declarado, os receios de uma reação desproporcionada de Moscovo mantêm-se nas lideranças ocidentais.

A diplomacia francesa, já em modo de gestão, considerou que a presença de tropas ocidentais na Ucrânia “não ultrapassaria o limiar da beligerância”. Stéphane Séjourné, ministro dos Negócios Estrangeiros de Paris, lembrou que o apoio à Ucrânia passará, em próximos passos, pela desminagem, operações cibernéticas ou a produção de armas em território ucraniano.

Enquanto isso, o Conselheiro de Segurança Nacional da Administração Biden, Jake Sullivan, é claro na quantificação da ameaça: Vladimir Putin “ganha a cada dia que passa” no impasse criado pela Câmara dos Representantes, ao travar o novo pacote de ajuda para a Ucrânia.

Embora muitos países europeus tenham aumentado as suas despesas com a defesa, ainda não é claro quanta vontade política existe nas capitais para ir mais longe - e o que é realmente realista para países que durante décadas confiaram demasiado nos EUA para manterem a sua garantia de segurança.

Timothy Garton Ash, no The Guardian, vai ao ponto: “‘Não perder’ não é suficiente: é hora de a Europa finalmente levar a sério uma vitória”.

Zelensky garante que Syrsky está a preparar dois planos para a guerra na Ucrânia. O presidente ucraniano afirmou que a estratégia futura do exército do país no campo de batalha depende da ajuda militar fornecida pelos Estados Unidos. “Se Kiev receber ajuda dos EUA, poderá começar a fazer recuar a Rússia. Caso contrário, terá de se concentrar apenas na defesa”, insiste Zelensky.

Mas a incógnita ucraniana não vem só do outro lado do Atlântico: também reside aqui na Europa. A UE não conseguiu cumprir o seu objetivo de enviar à Ucrânia um milhão de cartuchos de artilharia até março. Zelensky diz que apenas recebeu 30 por cento dos projéteis da União Europeia (ou seja, nem sequer os 50 por cento alegados por Borrell). A esse propósito, os Países Baixos anunciaram 100 milhões de euros para munições à Ucrânia.

A primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, propôs a emissão de 100 mil milhões de euros em euro-obrigações para impulsionar a indústria de defesa europeia, uma ideia que promove há quase um ano e que ganhou o apoio de Macron. A dívida mutualizada é contestada pela Alemanha e pelos Países Baixos. A República Checa tem promovido a compra de munições de países terceiros.

Da reunião de Paris, ainda que não assumido oficialmente, terá saído a noção de que cerca de 10% do orçamento de defesa de cada país precisava ser dedicado à Ucrânia para que Kiev vencesse - mas esse número aumentaria para perto de 20% se não houvesse mais ajuda militar dos EUA.

Umerov, ministro da Defesa ucraniano, tinha avisado no domingo - cerca de metade das armas enviadas pelo Ocidente não chegam a tempo. E isso tem duas consequências terríveis para a Ucrânia: perda de vidas e perda de território.


QOSHE - Tropas para a Ucrânia: ambiguidade estratégica - Germano Almeida
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Tropas para a Ucrânia: ambiguidade estratégica

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29.02.2024

“Não há consenso hoje para enviar tropas terrestres de forma oficial, assumida e endossada. Mas, dinamicamente, nada deve ser excluído. Faremos tudo o que for necessário para garantir que a Rússia não possa vencer esta guerra”
EMMANUEL MACRON. Presidente da França, após a reunião de Paris, 26 fevereiro 2024

“Nenhum soldado da Europa ou da NATO será enviado para a Ucrânia”
OLAF SCHOLZ. Chanceler da Alemanha, em reação às palavras de Macron, 27 fevereiro 2024

Nos dias que sucederam à invasão russa da Ucrânia, Joe Biden foi claro no apoio à Ucrânia e garantiu que a América iria fazer tudo, “no tempo que fosse preciso”, para travar a agressão russa e proteger Kiev.
Esse apoio do presidente dos EUA - hoje bloqueado por republicanos isolacionistas e de vistas curtas no que verdadeiramente está em causa para a posição da América na liderança global - foi fundamental para a Ucrânia resistir. Foi a decisão correta, mas não ficou isenta de erros. É que Biden, na mesma altura, também deixou claro que não colocava como cenário o envio de tropas norte-americanas para solo ucraniano. Isso foi encarado como um posicionamento prudente, para evitar um confronto direto EUA-Rússia (“seria a III Guerra Mundial”, alegou Biden). Mas terá sido um erro estratégico grave: ao excluir por completo essa possibilidade, o presidente dos EUA deixou campo demasiado aberto ao agressor russo, que assim pôde ir escalando a invasão em solo ucraniano, a ponto de ameaçar o flanco leste da NATO.

Ao assumir, de viva voz, que “não podemos excluir um cenário de envio de tropas ocidentais para defender a Ucrânia”, ainda que o coloque como a última das possibilidades, Macron sinaliza que o grau da ameaça russa sobre espaço europeu e território NATO nunca foi tão grande.

Esses alertas foram dados, nas........

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