Há uma certa sensação de déjà vu na ligação Trump/Putin neste estranho e perigoso ano de 2024.

Tenhamos alguma memória: o presidente russo já tinha sido decisivo para que Donald Trump tivesse tido uma campanha presidencial bem-sucedida em 2016.

Oito anos depois, os dados são diferentes: Trump já foi presidente, já perdeu a reeleição e agora está lançado para buscar um regresso à Casa Branca.

Quanto a Putin, os que, por 2016, ainda não tinham tido a verdadeira noção do perigo que representava a anexação da Crimeia - feita dois anos antes - já terão percebido que se trata da maior ameaça à segurança europeia e ocidental, depois da invasão em larga escala da Ucrânia (não-provocada, ilegal e criminosa) decretada a 24 de fevereiro de 2022.

Trump e Putin estão na mesma luta: ambos beneficiam com a desinformação, o nevoeiro dos factos e dos princípios e com a inversão dos dados objetivos por via da linguagem negacionista.

Donald perdeu a eleição de 2020, mas decretou por palavras uma vitória obviamente inexistente. Vladimir prefere obviamente que Trump vença em novembro e anuncia, cândido, que acha “Biden mais previsível e um político mais tradicional”. A Rússia ameaça a NATO, mas Putin jura que é a NATO que se prepara para atacar a Rússia.

Ambos apostam na inversão pelas palavras do que os compromete nos factos objetivos.

A proximidade Trump/Putin, ainda que disfarçada em alguns temas, é mais do que evidente na questão da Ucrânia. A tirada de Donald de incitar Putin a invadir países da NATO que não cumpram os 2% do PIB em gastos na Defesa ficará como uma mancha que os republicanos - agora que ficou claro que Trump será mesmo o nomeado presidencial - tardam em limpar.

A ex-congressista Liz Cheney, que tem sido uma das vozes mais críticas do Partido Republicano ao comportamento de Donald Trump, apontou, em entrevista à ABC: “O profundo silêncio da ala Putin no interior do Partido Republicano é perturbador. O povo americano tem de perceber que nestas eleições há um candidato que parece estar em profunda articulação com a autocracia do senhor Putin.”

Trump promete “acabar com a guerra em 24 horas” - o que só pode ser entendido como um sinal a Putin de que forçará Zelensky a ceder território a troco de um suposto cessar-fogo.

Só os muito ingénuos acreditarão que, perante esse cenário de paz miserável que imponha ao agredido a submissão de parte do seu país, o agressor ficaria satisfeito e parasse por ali.

A estratégia de inversão é muito fácil de identificar, por exemplo, na necessidade que Donald Trump tem de decretar que “Joe Biden humilhou os Estados Unidos” com um “péssimo discurso, o pior da história do Estado da União”, logo após a intervenção do presidente dos EUA na noite de 7 de março, no Capitólio. O antigo presidente dos EUA acusou Joe Biden de ter ignorado os problemas internos do país no discurso do Estado de União, de fomentar os conflitos no Médio Oriente e de não fazer frente a Putin.

Ora, uma rápida análise das palavras de Biden nesse discurso bastaria para verificar que se trata de uma negação da realidade. Atentemos ao que disse Joe Biden sobre a invasão russa da Ucrânia nesse discurso: “Temos de fazer frente a Putin! Não abandonaremos a Ucrânia. Não nos iremos embora. Não nos vamos curvar. Não me vou curvar.”

Outra inversão de Trump foi a de acusar Biden de ter “um discurso com uma mensagem de ódio e polarizadora, ao ignorar os problemas internos do país, nomeadamente no que diz respeito às medidas para controlar a imigração.”

Foi o contrário: Biden endereçou uma notável visão abrangente e compreensiva dos desafios da América neste tão complexo ano de 2024.

O Estado da União 2024 mostrou um Joe Biden firme, enérgico, determinado e convicto. Se o grande problema para a reeleição é a idade do presidente, quem tenha visto o discurso de quinta à noite em Washington DC terá mudado a sua perceção sobre isso. Além de ter lido um discurso muito bem montado e articulado, por várias vezes Biden saiu do guião, replicou críticas que congressistas lhe lançavam e revelou total aptidão para o momento.

O presidente dos EUA projetou vigor, força, domínio e confiança. Mais de 60% dos norte-americanos aprovaram o momento; 35% até aprovaram “fortemente”.

Era importante que assim tivesse sido. Biden continua ligeiramente atrás de Trump nas sondagens nacionais (ainda que uma pesquisa Emerson College, feita na véspera desse discurso, o tenha posto dois pontos à frente de Trump, por 51-49) e precisa de um gamechanger capaz de sustentar o caso da necessidade da sua reeleição.

Até a estratega republicana Sarah Longwell admitiu: Joe Biden “acertou em cheio” no que tinha de fazer no Estado da União e “alguns membros do Partido Republicano cometeram um erro grande sobre o que vale este presidente”.

Puxando pelo lado bom da sua longuíssima experiência, Joe Biden não perdeu tempo e atirou ao momento-chave dos últimos anos da Democracia americana: 6 de janeiro de 2021: “A vida ensinou-me a respeitar a liberdade e a democracia. A lutar por um futuro baseado nos valores fundamentais que definem a América: honestidade, decência, dignidade e igualdade. A respeitar todos. A oferecer a todos uma oportunidade. A impedir que o ódio tenha porto seguro.”

O objetivo foi claro: demarcar o que realmente o diferencia de Donald Trump. “Agora, há por aí pessoas da minha idade [o ex-presidente é quatro anos mais novo] com uma perspetiva diferente, crentes numa História americana baseada no ressentimento, na vingança e na retaliação. Eu não sou assim.”

Sobre o aborto, a imigração, os impostos e muito mais, Biden fez repetidamente o contraste com Trump, com os democratas na plateia a apoiá-lo com aplausos e Mike Johnson a revelar constrangimento em vários momentos, pelo entusiasmo que o presidente gerava: “Muita gente, aqui, não critica o ataque ao Capitólio. As mentiras de 6 de janeiro sobre as eleições de 2020 representaram a maior ameaça à democracia dos EUA desde a Guerra Civil.”

Biden foi particularmente eloquente na insistência de taxar os mais ricos e as grandes empresas: “Sou um capitalista, mas quero que todos paguem a sua justa parte. A classe trabalhadora que construiu este país não pode pagar mais impostos que os bilionários”.

“Ao contrário das políticas do passado, apologistas do corte de impostos para os mais ricos, na esperança de que tal acabasse por beneficiar quem menos tem, optámos por aumentar com critério o investimento público, demos mais poder e educação aos trabalhadores, consolidando a classe média, e promovemos a concorrência, no sentido de baixar os preços e ajudar empreendedores e pequenos empresários.”

É um ponto muito caro a Biden, há muitos anos. Ele apresenta-se como um “middle class Joe”, alguém que conhece bem a realidade do americano médio e pretende fazer esse contraste com o bilionário Trump, amigo dos cortes fiscais aos mais riscos.

O desempenho de Biden entusiasmou os congressistas democratas e por algumas vezes se ouviu: “Mais quatro anos! Mais quatro anos!” Não era suposto que o discurso tivesse uma componente de campanha eleitoral. Mas oito meses, na política americana, faz parecer a distância para a eleição geral um curto espaço até à grande vertigem: o que irá acontecer?

QOSHE - Trump e Putin, a mesma luta - Germano Almeida
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Trump e Putin, a mesma luta

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12.03.2024

Há uma certa sensação de déjà vu na ligação Trump/Putin neste estranho e perigoso ano de 2024.

Tenhamos alguma memória: o presidente russo já tinha sido decisivo para que Donald Trump tivesse tido uma campanha presidencial bem-sucedida em 2016.

Oito anos depois, os dados são diferentes: Trump já foi presidente, já perdeu a reeleição e agora está lançado para buscar um regresso à Casa Branca.

Quanto a Putin, os que, por 2016, ainda não tinham tido a verdadeira noção do perigo que representava a anexação da Crimeia - feita dois anos antes - já terão percebido que se trata da maior ameaça à segurança europeia e ocidental, depois da invasão em larga escala da Ucrânia (não-provocada, ilegal e criminosa) decretada a 24 de fevereiro de 2022.

Trump e Putin estão na mesma luta: ambos beneficiam com a desinformação, o nevoeiro dos factos e dos princípios e com a inversão dos dados objetivos por via da linguagem negacionista.

Donald perdeu a eleição de 2020, mas decretou por palavras uma vitória obviamente inexistente. Vladimir prefere obviamente que Trump vença em novembro e anuncia, cândido, que acha “Biden mais previsível e um político mais tradicional”. A Rússia ameaça a NATO, mas Putin jura que é a NATO que se prepara para atacar a Rússia.

Ambos apostam na inversão pelas palavras do que os compromete nos factos objetivos.

A proximidade Trump/Putin, ainda que disfarçada em alguns temas, é mais do que evidente na questão da Ucrânia. A tirada de Donald de incitar Putin a invadir países da NATO que não cumpram os 2% do PIB em gastos na Defesa ficará como uma mancha que os republicanos - agora que ficou claro que Trump será mesmo o nomeado presidencial - tardam em limpar.

A ex-congressista Liz Cheney, que tem sido uma das vozes mais críticas do Partido Republicano ao........

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