O cais em Santa Apolónia está apinhado de gente à espera de Mário Soares e vê-se uma bandeira de Portugal e um cartaz onde se lê “Liberdade Socialismo”. É o que mostra uma das muitas fotografias no Arquivo do DN da chegada de Soares a Lisboa a 28 de abril de 1974, fará domingo 50 anos. O secretário-geral do PS veio de Paris no Sud Express e mal sai do comboio é logo envolvido por uma multidão. Há imagens de abraços e beijos. Adivinha-se a emoção, três dias depois da Revolução.

Maria Barroso viajou com o marido. Também outros resistentes antifascistas, como Manuel Tito de Morais, que viria a ser presidente da Assembleia da República. Depois, Soares vai a uma varanda da estação de comboios e discursa. O país iria habituar-se a escutá-lo. E muito. Durante décadas.

Hoje sabemos o quanto este político foi decisivo para o triunfo da democracia (tal como o foi o general António Ramalho Eanes). E quando José Pedro Aguiar-Branco, na sessão solene na Assembleia que celebrou a Revolução de 1974, obra dos Capitães de Abril, descreveu Soares como “a personificação maior de um espírito de bom senso e sabedoria”, estava a reconhecer duas características da personalidade do homem que viria a ser primeiro-ministro e Presidente da República, à qual se somava outra, decisiva: a coragem, a coragem física que mostrou a combater a ditadura, e que lhe valeu a prisão e o exílio, a coragem que mostrou depois para que o Portugal saído do 25 de Abril fosse finalmente um país sem mordaças, em que se pudesse ir a uma livraria e comprar os livros que se quisesse, como fazia em Paris, onde se sentia livre.

Soares, que até chegou a ser militante comunista, percebeu cedo que Portugal tinha de ter por modelo não a União Soviética, mas essa França onde viveu, ou essa Alemanha onde em 1973 fundou o PS, ou mesmo esses Estados Unidos que, durante o PREC, perceberam que, para garantir que uma democracia liberal triunfasse em Lisboa, após 48 anos de ditadura de direita, teriam de apostar num político de esquerda (o embaixador Frank Carlucci entendeu melhor os portugueses do que Henry Kissinger, o seu chefe, que nos via a partir de Washington).

Hoje os portugueses reconhecem o papel decisivo de Soares na construção do Portugal democrático, como mostra uma sondagem DN/JN/TSF publicada na nossa edição especial dos 50 anos do 25 de Abril. A maioria identificou-o como “a personalidade política mais importante do 25 de Abril e do período de transição”.

Mas o legado do fundador do PS ao país é muito maior do que aquilo que fez em 1974 e 1975. Foi ele, já à frente do I Governo Constitucional, que decidiu a candidatura portuguesa à União Europeia, então CEE. “A intuição, a vontade, a inteligência de Soares a seguir ao 25 de Abril é dizer que não é possível a democracia em Portugal sem a Europa”, dizia-me há dias o historiador francês Yves Leonard, grande conhecedor de Portugal, autor de livros como História da Nação Portuguesa, História do Portugal Contemporâneo, a biografia Salazar e agora Breve História do 25 de Abril. Sim, Soares - o amigo de François Mitterrand, de Willy Brandt, de Olof Palm - queria um Portugal que buscasse um destino europeu, finda a era dos impérios.

Muito se tem escrito sobre Soares. Por portugueses e por estrangeiros. Creio que foi ao ler a Construção da Democracia em Portugal, do americano Kenneth Maxwell, que tive consciência plena não só da importância decisiva de Soares para a construção da democracia, como do papel da sua personalidade. Muitos dos adversários dizem que sempre foi um burguês. Outros, que preferiu aliar-se à direita do que à esquerda (mesmo respeitando a luta do PCP contra o salazarismo). Até pode ser tudo verdade, mas o que conta mesmo é o bom senso, a sabedoria, a coragem. E um grande domínio da arte da política, seja lá o que isso for. Uma boa leitura sobre o assunto é o recém-publicado Mário Soares e o 25 de Abril, de David Castaño.

Por falar em livros, que Soares adorava, relembro que foi reeditado Portugal Amordaçado, primeiro publicado em França, com o título Le Portugal Baillonné, e que só depois do 25 de Abril teve cá edição. Ora, lá está: um país sem mordaças, era o sonho de Soares. E este ano celebra-se o centenário do nascimento do homem que foi, também, o primeiro presidente civil da democracia. As celebrações têm vindo a acontecer, mas que a 7 de dezembro nos lembremos todos de prestar uma grande homenagem a um homem com virtudes e defeitos, um político com decisões certas e erradas, mas uma personalidade que ajudou Portugal a ser um país melhor e que, convém sublinhar, quando foi reeleito Presidente, obteve uma votação até hoje nunca ultrapassada.


Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Soares e o Sud Express para a democracia - Leonídio Paulo Ferreira
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Soares e o Sud Express para a democracia

58 23
26.04.2024

O cais em Santa Apolónia está apinhado de gente à espera de Mário Soares e vê-se uma bandeira de Portugal e um cartaz onde se lê “Liberdade Socialismo”. É o que mostra uma das muitas fotografias no Arquivo do DN da chegada de Soares a Lisboa a 28 de abril de 1974, fará domingo 50 anos. O secretário-geral do PS veio de Paris no Sud Express e mal sai do comboio é logo envolvido por uma multidão. Há imagens de abraços e beijos. Adivinha-se a emoção, três dias depois da Revolução.

Maria Barroso viajou com o marido. Também outros resistentes antifascistas, como Manuel Tito de Morais, que viria a ser presidente da Assembleia da República. Depois, Soares vai a uma varanda da estação de comboios e discursa. O país iria habituar-se a escutá-lo. E muito. Durante décadas.

Hoje sabemos o quanto este político foi decisivo para o triunfo da democracia (tal como o foi o general António Ramalho Eanes). E quando José Pedro Aguiar-Branco, na sessão solene na Assembleia que celebrou a Revolução de 1974, obra dos Capitães de Abril, descreveu Soares como “a personificação maior de um espírito de bom senso e sabedoria”, estava a reconhecer duas características da personalidade........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play