A democracia portuguesa celebrou condignamente o seu 50.º aniversário. E houve motivos de sobra para tal comemoração. Apesar dos excessos que quase sempre acompanham os processos revolucionários, é facto que o 25 de Abril restituiu a liberdade ao povo português, abriu a nação à democracia e ao desenvolvimento e permitiu a descolonização (em discutíveis condições, é certo) dos territórios ultramarinos a que há muito tempo se devia ter concedido a autodeterminação e a independência.

Desde então, Portugal evoluiu muito, sofreu mudanças de vulto, modernizou-se e os seus cidadãos passaram a usufruir de importantes direitos, liberdades e garantias, colocando finalmente o país na via das nações desenvolvidas do ocidente europeu.

Houve, contudo, uma característica do deposto regime político que o novo poder democrático foi incapaz de alterar – o centralismo de Estado –, apesar de ter tido a preocupação de impor na Constituição (1976) a regionalização administrativa do continente.

Efectivamente, a Assembleia Constituinte intuiu – e bem – que, para melhor democratizar e desenvolver o país, era essencial promover a descentralização também ao nível regional, criando entes infra-estaduais e supramunicipais que até então não existiam – as regiões administrativas.

Percebeu que há matérias e problemas que, pela sua escala e complexidade, não podem ser resolvidos pelos municípios, mas que podem e devem ser solucionados, com mais celeridade, eficácia e eficiência, por entidades mais próximas dos cidadãos e que os envolvam no processo de gestão e decisão.

Percebeu que Portugal era, como ainda hoje é, um país com grande diversidade de realidades regionais, com evidentes e gritantes disparidades entre litoral e interior em aspectos essenciais da vida comunitária e individual: demografia, rendimento disponível, mobilidade, qualificação profissional, oportunidades de emprego, saúde, educação, habitação, emigração, inovação e produtividade, etc..

Percebeu, por isso, que era fundamental garantir constitucionalmente a coesão económica e social dos territórios regionais, o desenvolvimento harmónico do todo nacional e o envolvimento dos cidadãos de cada uma das regiões do país na consecução de tais objectivos.

E percebeu, finalmente, que, não se tratando de institucionalizar regiões políticas autónomas, as regiões administrativas deviam corresponder às regiões-plano já existentes, por os respectivos territórios reunirem suficientes factores identitários e sentimentos de pertença.

Daí que a Constituição da República Portuguesa (CRP) haja imposto a existência de regiões administrativas, cujas áreas deviam ser correspondentes às das regiões-plano, correspondência que expressamente manteve na revisão de 1982 até à revisão de 1989, na qual optou por uma definição mais vaga de região administrativa, remetendo para a lei geral a designação e definição de cada região e fazendo depender a instituição em concreto de cada uma delas “do voto favorável da maioria das assembleias municipais que representem a maior parte da população da área regional”.

Apesar da quase unanimidade dos partidos políticos então representados na Assembleia da República (AR) relativamente à solução constitucional encontrada, havia a convicção geral de que as decisões concretas a tomar nessa matéria, em sede legislativa, pela sua importância e complexidade e pela amplitude das suas repercussões na vida dos cidadãos, impunham o estudo aturado e um debate profundo sobre os problemas e conflitos que a matéria suscitava.

Daí a elaboração do “Livro Branco da Regionalização”, de 1981, organizado e editado por mandado do então governo da Aliança Democrática, presidido por Francisco Pinto Balsemão e o debate e reflexão que se lhe seguiu ao longo de uma dezena de anos.

Só em 1991, a AR veio a aprovar a Lei-Quadro da Regionalização, proporcionando as necessárias bases jurídicas para o avanço do mapa da regionalização.

Porém, apenas em 1996, o PS avançou com um projecto de lei com o mapa da regionalização, quando estava em curso um processo de revisão constitucional.

Foi então que ocorreu uma habilidosa jogada política – protagonizada por Marcelo Rebelo de Sousa, então presidente do PSD e opositor da regionalização – que haveria de congelar a matéria por longos anos e que se traduziu num ultimato feito ao PS (liderado pelo primeiro-ministro António Guterres): o PSD só daria o seu acordo à revisão constitucional em curso se o PS aceitasse o referendo da regionalização, a prever nessa mesma revisão e sujeito a duas perguntas – uma de âmbito nacional, sobre a concordância ou discordância em relação ao mapa regional; e outra de índole regional, dirigida apenas aos residentes em cada uma das regiões administrativas propostas, em que se indagaria a aceitação ou não do traçado dessa região, sendo que o voto só poderia considerar-se favorável se fosse simultaneamente favorável às duas referidas perguntas.

Infelizmente, o PS aceitou o repto… e também um regime orgânico referendário que, além do mais, fez depender a validade da consulta popular da participação da maioria dos cidadãos eleitores.

Dessa forma, Marcelo e o PSD armadilharam de tal forma o referendo que veio a ser vazado, na revisão constitucional de 1997, que era “mesmo difícil conceber regime mais convidativo a uma rejeição de qualquer divisão regional do Continente”, para utilizar uma expressão que aquele usou.

Efectivamente, engendrar um referendo capaz de aliar os adversários da regionalização aos seus apoiantes que, todavia, discordam do mapa apresentado é algo que revela uma maquiavélica sagacidade.

O referendo realizado em 8 de Novembro de 1998 permitiu testar o elevado grau de dificuldade daquele regime: o “NÃO” venceu por mais de 63% dos votantes!

Decorridos que vão mais de 25 anos sobre esse referendo e passados que estão 50 anos sobre o 25 de Abril, permanece por concretizar um dos patamares constitucionais da descentralização territorial do continente – as regiões administrativas – e, desse modo, continuam por cumprir, nessa parte, os princípios da subsidiariedade e da descentralização da Administração Pública, igualmente sancionados na mesma Lei Fundamental.

Depois da recente charla do Senhor Presidente da República com os jornalistas estrangeiros, na qual, entre outras bizarrias, se permitiu apelidar de rural o actual primeiro-ministro e presidente do seu partido, não deixa de ser curioso que o urbaníssimo autor da blague seja o mesmo que se ufana da ruralidade dos seus antepassados, designadamente da sua avó Joaquina, de uma remota aldeia de Celorico de Basto e da autoria de um regime constitucional de referendo da regionalização que, na prática, vem ajudando a manter o monstro do centralismo que o Estado Novo tão ciosamente alimentou.

Desafortunadamente, parece que neste país, sob a capa do nacionalismo, há muito mais rurais do que se poderia imaginar!…

QOSHE - REGIONALIZAÇÃO: A INCUMPRIDA IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL DE ABRIL - António Brochado Pedras
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REGIONALIZAÇÃO: A INCUMPRIDA IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL DE ABRIL

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10.05.2024

A democracia portuguesa celebrou condignamente o seu 50.º aniversário. E houve motivos de sobra para tal comemoração. Apesar dos excessos que quase sempre acompanham os processos revolucionários, é facto que o 25 de Abril restituiu a liberdade ao povo português, abriu a nação à democracia e ao desenvolvimento e permitiu a descolonização (em discutíveis condições, é certo) dos territórios ultramarinos a que há muito tempo se devia ter concedido a autodeterminação e a independência.

Desde então, Portugal evoluiu muito, sofreu mudanças de vulto, modernizou-se e os seus cidadãos passaram a usufruir de importantes direitos, liberdades e garantias, colocando finalmente o país na via das nações desenvolvidas do ocidente europeu.

Houve, contudo, uma característica do deposto regime político que o novo poder democrático foi incapaz de alterar – o centralismo de Estado –, apesar de ter tido a preocupação de impor na Constituição (1976) a regionalização administrativa do continente.

Efectivamente, a Assembleia Constituinte intuiu – e bem – que, para melhor democratizar e desenvolver o país, era essencial promover a descentralização também ao nível regional, criando entes infra-estaduais e supramunicipais que até então não existiam – as regiões administrativas.

Percebeu que há matérias e problemas que, pela sua escala e complexidade, não podem ser resolvidos pelos municípios, mas que podem e devem ser solucionados, com mais celeridade, eficácia e eficiência, por entidades mais próximas dos cidadãos e que os envolvam no processo de gestão e decisão.

Percebeu que Portugal era, como ainda hoje é, um país com grande diversidade de realidades regionais, com evidentes e gritantes disparidades entre........

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