Entre o final dos anos 80 e o início do novo milénio, de uma complexa conjuntura política e económica, nascem e proliferam derivações neonazis dos skinheads, originalmente um movimento multicultural de trabalhadores. Em Portugal, o mais antigo desses grupos tem-se reinventado múltiplas vezes e está ainda ativo como 1143. Volto a este momento e ao seu cenário para que não descuidemos o dever de aprender com a histórica.

Em 1989, caia a muro de Berlim, aumentava a pressão económica na Alemanha, a globalização desfavorecia as economias mais frágeis. Acrescia a desindustrialização e a consequente perda de empregos, a subida das taxas de juro, da inflação e das medidas de austeridade, sentidas de forma ainda mais intensa em Portugal na entrada para a UE. Ao mesmo tempo, a europa alavancava uma ideia de prosperidade neoliberal. A entrada da CEE trazia fundos para obras públicas e aumentava a procura de mão-de-obra para a construção civil.

Aumentavam também os fluxos migratórios. Dos PALOP veio mão-de-obra pouco qualificada para construir a expo-98, outros vários equipamentos urbanísticos e auto-estradas e para assegurar trabalhos domésticos e serviços que exigiam menor diferenciação. Chegavam ao mesmo tempo imigrantes de classe média-alta e qualificados - do Brasil e depois da europeu comunitária -, para responder às novas exigências da banca, tecnologia e marketing. Construía-se um Portugal oportunamente multicultural, mas com oportunidades, desde o início, mais prósperas e dignas para uns do que para outros.

Cresciam tensões entre o projeto de uma Europa aberta, livre e progressista e outra mais conservadora e ciosa das fronteiras físicas e identitárias. Conservadorismo, austeridade e desigualdade são sempre um barril de pólvora. O seu vórtice forja as narrativas populistas, ultranacionalistas e xenófobas, e com elas o ódio ao outro – negro, cigano, imigrante, intruso, árabe, indiano, muçulmano. Esta conjuntura resultou tragicamente no assassinato de ativista José Carvalho e, mais tarde, de Alcindo Monteiro, jovem negro de 27 anos, ambos pela mão de grupos skinhead de extrema-direita. O grupo e os protagonistas envolvidos no espancamento fatal de Alcindo integram ainda hoje ao tal 1143. A este grupo pertence pelo menos um dos autores dos crimes de violência racista e xenófoba da madrugada de sábado passado no Campo 24 de Agosto – Porto.

Há duas condições embrionárias e endémicas no projeto europeu neoliberal: a colonialidade eurocêntrica e a desigualdade. Foi a organização hierárquica das sociedades feudais, imperiais e coloniais que fundou a desigualdade moderna a partir do cruzamento das categorias de classe, raça e género. Embora soe a novo, a interseccioalidade é a outra face de um dispositivo antigo de controlo do poder e acesso a direitos. As sociedades contemporâneas e as suas políticas económicas teimam em não reconhecer este legado e, por isso, o reproduzem. Melhor seria dizer, porque o reproduzem, teimam em não o reconhecer. É este o motivo pelo qual o racismo, a xenofobia, como o classismo e o heterossexismo, são plásticos e se renovam em sucessivas manobras de encobrimento e disfarce que os eternizam e desmentem. Exemplo é o apego à celebração dos “desdobrimentos” como pioneiros da globalização e do talento lusotropical português. Outro é a irritação perante as denúncias de que os imaginários e ideologias coloniais e eurocêntricos persistem e de que a hospitalidade portuguesa é mais publicitária e de conveniência do que efetiva.

Voltando às décadas de 80 e 90, desenham-se em Portugal, como no eixo europa-estados unidos, narrativas de criminalização e marginalização dos grupos mais vulneráveis. Criminalizam-se mediática e politicamente os grupos de jovens negros, titulados indiscriminadamente como gangues. A criminalidade é sumariamente atribuída a uma propensão individual e étnico-racial e entendida como consequência da miséria moral e inércia funcional. Crescem, lado a lado, as fantasias meritocráticas e eurocêntricas em que a virtude e dignidade, o emprego, a habitação, o bem-estar e o pacote de privilégios das classes média e alta passam a pertencer, prioritariamente e por direito e “mérito”, aos europeus e nacionais brancos. Todos os outros são drogados, criminosos, incivilizados e parasitas, pessoas sem ambição e mérito, penduradas no sistema social e responsáveis e merecedoras da sua sorte social e económica. Para estas resta apenas a “lei e a ordem”. Optei por me referir ao passado no tempo verbal do presente. Porque é lá como aqui que estamos, mais uma vez.

Num momento em que se agrava a crise inflacionista, em que não chega à classe média trabalhadora o salário para manter uma habitação decente, não há emprego nem futuro digno e sustentável para as pessoas jovens, em que prospera a instrumentalização da mão-de-obra intensiva, precária e informal e em que a desigualdade se multiplica, há uma pergunta que se impõe com urgência. Onde está a responsabilidade política de quem aceita que se cavalguem explicações simplistas e bodes expiatórios, para este cenário? Onde está a liberdade quando se celebram 50 anos de democracia sem que chegue a “paz, o pão, habitação; saúde, educação” para todos? A resolução das crises do mercado livre e global - que são circulares e consecutivas porque se geram dentro do próprio sistema, mesmo que agravadas pela guerra ou pandemia -, vale mais do que a paz e a coesão social? Valem mais do que os direitos à inclusão, segurança, dignidade e saúde das pessoas imigrantes e racializadas. Isso parece infelizmente certo.

Este é um momento de elevadíssima responsabilidade política. Quando a classe política não enfrenta com honestidade e compromisso as falências do seu sistema económico e programa político não a assume e demite-se de assegurar os direitos de todas as pessoas, em particular das mais vulneráveis, protegendo as que alavancam e beneficiam desse sistema (banca e grandes empresas). Ao fazê-lo alimenta o legítimo descontentamento e o sentimento de ameaça e autoriza e patrocina que estes sejam explorados por quem oferece a solução simples e eficaz de “cortar o mal pela raiz” e fazer desaparecer aqueles que hão ser, sempre e convenientemente, os responsáveis por todos os males, da falta de habitação, emprego e salário à ameaça de extinção da pura e virtuosa raça portuguesa. No topo estão as pessoas imigrantes, ciganas e racializadas.

Portugal tem um problema de imigração, sim. Tem-no porque não assume o que quer fazer com ela. A imigração é assumida como necessária para salvar a demografia e a segurança social. Mas… a cada imigrante o seu estatuto e hospitalidade. Os internacionais bem sucedidos e empreendedores que outrora foram recebidos com vistos Gold, hoje beneficiam de benefícios fiscais para residentes não-habituais, na medida em que basta que garantam impostos indiretos ao consumo. Servem para cosmopolizar as cidades, internacionalizar a oferta gastronómica e sustentar o alojamento local, pagar imóveis de luxo e enriquecer o hub tecnológico português. Embora alimentem a especulação imobiliária e dos outros bens e serviços, os internacionais de classe média e alta são sempre bem-vindos para enriquecer a economia e a cultura. Já os imigrantes, essa outra categoria, muitas vezes convenientemente indocumentada, servem para fornecer mão-de-obra barata ao turismo, restauração, construção civil, agricultura e serviços de entrega e TVDE, com trabalho sazonal, precarizado e longas jornadas de trabalho pagas com salários que só permitem viver em habitações sobrelotadas, quando não na rua. No entanto, ao contrário dos internacionais e apesar dos seus impostos e contribuições sociais sem isenções e benefícios, ameaçam a economia e a cultura.

O que aconteceu no sábado passado na freguesia do Bonfim é consequência de recusar as lições da história. É produto da negação do legado colonial e eurocêntrico e da conveniência política. Os grupos de ódio e milícias supremacistas propagam e arregimentam impunemente nas redes sociais on-line. Procura quem lhes entregue um pretexto para agir o ódio racial e xenófobo, celebrado como “heróico” na defesa identitária e “ajuste de contas”. Predam as legítimas frustrações e angústias dos portugueses, uns trabalhadores mas pobres, outros no desemprego intermitente ou de longa duração. Seguem inflamados e legitimados não apenas pelo discurso político da extrema-direita parlamentar, mas também por mensagens, mais insidiosas e encobertas ou explícitas e despudoradas, que fabricam narrativas de criminalidade étnico-racial e securitárias.

Em pré-campanha, um saudoso protagonista da direita austera e conservadora associa a imigração à criminalidade. A responsável hierárquica pelo ministério público vaticina o futuro criminal das crianças e jovens cujos direitos devia proteger. Todas percebemos que não se referiam à criminalidade que vitima as pessoas imigrantes. Também assumimos que não se referiam às causas que decorrem das falências sistémicas e que contribuem para percursos de criminalidade qualquer que seja a origem geográfica e étnico-racial. Um presidente de Câmara pede a extinção da AIMA para chamar mais segurança aos poderes da autarquia, enquanto dois anos antes rejeita um plano de integração e um conselho municipal para as comunidades imigrantes. A ideia de reparação é discutida de forma leviana e intencionalmente alarmista, resistindo a um debate que lhe confira dignidade e rigor e acusada como “traição à pátria” por um partido parlamentar que cavalga o reacionarismo.

Enquanto isso, nas redes e nas ruas, moradores e comerciantes do Bonfim, apoiados e um pouco por todo o país, apelidam como excessiva o violência xenófoba que aceitaram encomendar na madrugada de sábado, insistem no “ajuste de contas” e apagam a motivação racial e xenófoba. Um canal de televisão, ligado em cada café do país, debita quase 24h de crimes e outras sensacionalidades alarmistas às quais junta análises simplistas e que transbordam de preconceito. Nos restantes média os protagonistas de sempre, na maioria homens brancos, redundam na branquitude e baixíssima literacia decolonial.

Uma parte da sociedade e da classe política lamenta moralmente o racismo. Pedem que se avance e que fique no passado colonial o que pertence apenas ao passado. Comovem-se e condenam a violência de Sábado, MAS...

Pode o combate às desigualdades conciliar-se com a incúria e inoperância do sistema? Pode o enriquecimento de uma minoria perdurar sem as desigualdades? Como se concilia o oportunismo das estruturas de poder com a reparação das desigualdades coloniais de ontem e hoje, com a garantia de direitos para todas as pessoas?

Se o problema for para resolver: garanta-se a regularização e inclusão de todas as pessoas imigrantes, os direitos à identidade, políticos e económicos de todas as que residem em Portuga. Proteja-se a habitação da especulação, descolonizem-se os imaginários, puna-se de forma proporcional e contingente o ódio racial e outras discriminações, aja-se sobre os grupos de ódio on-line. Promova-se a literacia política e a democracia.

Estas são as responsabilidades que a classe política nos deve. A nossa é exigi-las incessantemente, na totalidade e a nenhuma a menos. Façamos a nossa parte.

QOSHE - Internacionais sim, imigrantes não - Joana Cabral
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Internacionais sim, imigrantes não

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09.05.2024

Entre o final dos anos 80 e o início do novo milénio, de uma complexa conjuntura política e económica, nascem e proliferam derivações neonazis dos skinheads, originalmente um movimento multicultural de trabalhadores. Em Portugal, o mais antigo desses grupos tem-se reinventado múltiplas vezes e está ainda ativo como 1143. Volto a este momento e ao seu cenário para que não descuidemos o dever de aprender com a histórica.

Em 1989, caia a muro de Berlim, aumentava a pressão económica na Alemanha, a globalização desfavorecia as economias mais frágeis. Acrescia a desindustrialização e a consequente perda de empregos, a subida das taxas de juro, da inflação e das medidas de austeridade, sentidas de forma ainda mais intensa em Portugal na entrada para a UE. Ao mesmo tempo, a europa alavancava uma ideia de prosperidade neoliberal. A entrada da CEE trazia fundos para obras públicas e aumentava a procura de mão-de-obra para a construção civil.

Aumentavam também os fluxos migratórios. Dos PALOP veio mão-de-obra pouco qualificada para construir a expo-98, outros vários equipamentos urbanísticos e auto-estradas e para assegurar trabalhos domésticos e serviços que exigiam menor diferenciação. Chegavam ao mesmo tempo imigrantes de classe média-alta e qualificados - do Brasil e depois da europeu comunitária -, para responder às novas exigências da banca, tecnologia e marketing. Construía-se um Portugal oportunamente multicultural, mas com oportunidades, desde o início, mais prósperas e dignas para uns do que para outros.

Cresciam tensões entre o projeto de uma Europa aberta, livre e progressista e outra mais conservadora e ciosa das fronteiras físicas e identitárias. Conservadorismo, austeridade e desigualdade são sempre um barril de pólvora. O seu vórtice forja as narrativas populistas, ultranacionalistas e xenófobas, e com elas o ódio ao outro – negro, cigano, imigrante, intruso, árabe, indiano, muçulmano. Esta conjuntura resultou tragicamente no assassinato de ativista José Carvalho e, mais tarde, de Alcindo Monteiro, jovem negro de 27 anos, ambos pela mão de grupos skinhead de extrema-direita. O grupo e os protagonistas envolvidos no espancamento fatal de Alcindo integram ainda hoje ao tal 1143. A este grupo pertence pelo menos um dos autores dos crimes de violência racista e xenófoba da madrugada de sábado passado no Campo 24 de Agosto – Porto.

Há duas condições embrionárias e endémicas no projeto europeu neoliberal: a colonialidade eurocêntrica e a desigualdade. Foi a organização hierárquica das sociedades feudais, imperiais e coloniais que fundou a desigualdade moderna a partir do cruzamento das categorias de classe, raça e género. Embora soe a novo, a interseccioalidade é a outra face de um dispositivo antigo de controlo do poder e acesso a direitos. As sociedades contemporâneas e........

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