Todos os dias, as redes sociais exibem variadas formas de violência. Sendo impraticável a solidariedade para com todas as vítimas, opta-se antes por demonstrar empatia condicional. Sempre que um meio de comunicação social noticia um desacato ou uma agressão, o internauta radicalizado apressa-se a tentar descobrir quais os gentílicos envolvidos. Quando animais de estimação se magoam, a internet comove-se. Quando pessoas se magoam, a internet vai pesquisar qual era nacionalidade de quem magoou e de quem ficou magoado. Se porventura o texto referir "brasileiros", "indianos" ou "famílias de etnia cigana", o dia está ganho e celebra-se como um fora-de-jogo anulado pelo VAR. A dessensibilização chega ao ponto de festejar a violência que mais valida a narrativa.

O ataque racista que aconteceu no Porto foi condenado institucionalmente de forma transversal, mas houve quem ficasse bastante contente com a oportunidade mediática que o incidente produziu. Ex-comentadores da CMTV têm jeito para navegar numa política futebolizada, pelo que é certo que passaremos a semana a discutir a entrada de argelinos com o nível que nos anos 90 se discutia uma entrada do defesa-central Argel. André Ventura teria preferido que um ataque daquela violência tivesse imigrantes como perpetradores e não como vítimas, mas sem surpresa conseguiu tornar as agressões a migrantes num argumento a favor da ideia de que a imigração está "descontrolada".

Não se engane, leitor. Ventura não pretende um país mais seguro. Ventura fica em pulgas de cada vez que há um desacato na praceta do bairro, tremendamente excitado com a possibilidade de estarem envolvidas pessoas vindas de fora que permitam reforçar as suas campanhas importadas da extrema-direita internacional. O crime mais denunciado e que mais mata em Portugal é a violência doméstica. A esmagadora maioria dos condenados são homens. Não me parece que o Chega diga que o nascimento de indivíduos do sexo masculino está "descontrolado". Para além disso, a violência da extrema-direita também não parece preocupá-lo. É um homem extremamente assertivo a alertar para a existência de párias, a não ser sejam párias da nossa pátria.

Por fim, o discurso de que as agressões são menos condenáveis se tiver sido um ajuste de contas é excelente. É interessante ver as pessoas que temem a imposição da lei Sharia na Europa a defender princípios jurídicos medievais. Mais antigos até: "olho por olho, dente por dente" é uma ideia do Código de Hammurabi. Bater-me-ei até à morte pelos costumes ocidentais! Como? Através de leis da Mesopotâmia.

QOSHE - Crimes de amor-ódio - Manuel Cardoso
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Crimes de amor-ódio

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07.05.2024

Todos os dias, as redes sociais exibem variadas formas de violência. Sendo impraticável a solidariedade para com todas as vítimas, opta-se antes por demonstrar empatia condicional. Sempre que um meio de comunicação social noticia um desacato ou uma agressão, o internauta radicalizado apressa-se a tentar descobrir quais os gentílicos envolvidos. Quando animais de estimação se magoam, a internet comove-se. Quando pessoas se magoam, a internet vai pesquisar qual era nacionalidade de quem magoou e de quem ficou magoado. Se porventura o texto referir "brasileiros", "indianos" ou "famílias de etnia cigana", o dia está ganho e celebra-se como um........

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