Não há como dizer de outro modo: pelos vistos, os principais autores e os organizadores do livro Identidade e Família, agora apresentado por Passos Coelho, estão contra a chamada Sagrada Família: Maria, José e Jesus não são uma família tradicional, como gostam de nos papaguear. Esta família é uma mãe solteira que não conhecia homem, um homem que a acolhe já grávida e assume um filho que não é seu, e um filho que diz que o seu pai é outro.

É uma família destes tempos, afinal, até no filho único tido (no catolicismo tradicional), muito longe do cânone de famílias numerosas (porque não há preservativos numa relação) com que se deliciam setores ultraconservadores da Igreja e da direita política. Mas isso parece estar longe do que pensam e escrevem alguns destes 16 homens (e meia dúzia de mulheres), num livro organizado só por homens.

Não interessa, aqui, o que possam contar ali alguns nomes que, eventualmente, trarão uma visão mais moderada a estes debates, mas o que os seus organizadores e principais autores querem passar com este livro é uma imagem monolítica da família, espezinhando pessoas concretas e gente que sofre, ou atacando histórias felizes mas que não encaixam no seu modelo.

Estes autores, afinal, parece que defendem só a única família que cabe na sua cabeça: pai, mãe e filhos. De resto, atacam todas as outras famílias, as daqueles que se divorciam (porque agora a legislação “facilita o divórcio”), as que são do mesmo sexo, as monoparentais (porque se falta uma mãe ou um pai num casal homossexual, também faltará quando uma mãe ou pai morre), e podemos continuar com todos os exemplos que não são desta norma.

Esquecem o essencial: que Jesus, no seu tempo, se sentou à mesa com todos, acolhendo-os e cuidando deles: as prostitutas, os ladrões, os estrangeiros, os adúlteros (então um crime), os presos, em suma, “todos, todos, todos”, todos aqueles que agora estes autores excluem da sociedade: os divorciados e recasados, os homossexuais, os trans, as mulheres que não são nem donas de casa, nem mães. Eles excluem a Sagrada Família da mãe solteira, do homem que a acolhe e do filho que pouco quer saber destes dois.

O livro foi apresentado com entusiasmo por Passos Coelho, antigo primeiro-ministro, que em tempos defendeu a interrupção voluntária da gravidez ou a despenalização do consumo de drogas. Era jovem e mais acertado, agora escandaliza-se com a cultura da morte, por causa do aborto e da eutanásia, ele que parece esquecido da cultura com que governou: austeritária, a tirar mais a quem tinha menos, aos pobres e pensionistas, despedindo nas escolas e tirando nos hospitais, sem cuidar dos trabalhadores, dos desempregados e dos jovens. Isto sim, é uma cultura da morte.

Já antes das eleições, Passos tinha difundido a mentira de a imigração trazer insegurança, uma perceção errada, sem qualquer fundamento nos factos. Ele que foi o ovo da serpente (foi Passos quem trouxe Ventura para a política), insiste em ser o combustível que alimenta o sonho extremista da sua criação. É caso para dizer: perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que dizem.

QOSHE - Eles estão contra a Sagrada Família - Miguel Marujo
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Eles estão contra a Sagrada Família

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11.04.2024

Não há como dizer de outro modo: pelos vistos, os principais autores e os organizadores do livro Identidade e Família, agora apresentado por Passos Coelho, estão contra a chamada Sagrada Família: Maria, José e Jesus não são uma família tradicional, como gostam de nos papaguear. Esta família é uma mãe solteira que não conhecia homem, um homem que a acolhe já grávida e assume um filho que não é seu, e um filho que diz que o seu pai é outro.

É uma família destes tempos, afinal, até no filho único tido (no catolicismo tradicional), muito longe do cânone de famílias numerosas (porque não há preservativos numa relação) com que se deliciam setores ultraconservadores da Igreja e da direita política. Mas isso parece estar longe do que pensam e escrevem alguns........

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