Na primeira terça feira de Novembro deste ano realizar-se-ão as eleições presidenciais norte-americanas. À data de hoje, tudo indica que tanto o incumbente Joe Biden como o challenger Donald Trump podem ganhar a corrida à Casa Branca.

A inesperada vitória de Trump em 2016, tal como a disputada eleição de 2020 que resultou na eleição de Joe Biden, e na singular invasão do Capitólio, provocaram um debate global nunca antes verificado. Discutem-se personalidades. Salvo raras exceções, a discussão incide sobre quem gostaríamos que fosse Presidente dos Estados Unidos. A verdade é que nós – portugueses e europeus – podemos preferir este ou aquele candidato, mas a escolha não é nossa.

Julgo ser mais útil considerar aquilo que não depende da personalidade do Presidente dos EUA. As linhas mestras que orientam a política externa americana não se decidem em função da personalidade do homem ou mulher que, temporariamente, ocupam a Sala Oval. Por outras palavras, há uma dimensão estrutural da política externa que convém salientar.

Publicado a 12 de outubro de 2022, o National Security Strategy of the United States espelha a forma como Washington olha para o mundo. O documento define as prioridades, as alianças, os adversários e as respostas aos desafios que se vislumbram no horizonte. O mundo visto a partir de Washington pauta-se pela ameaça real representada pelas autocracias russa e chinesa, determinadas a subverter a ordem democrática. Sublinha, a curto prazo, a natureza agressiva da Rússia e, a longo prazo, identifica a República Popular da China como o principal rival mundial dos Estados Unidos.

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Independentemente do resultado das eleições de Novembro deste ano, esta visão americana do mundo não se irá alterar. Washington aposta, crescentemente, no Indo-Pacífico, onde se desenvolve mais de 40 por cento do comércio europeu. Para conter a assertividade chinesa na região, os EUA promoveram a criação da AUKUS em 2021, a reativação do QUAD e o robustecimento das alianças bilaterais com a Coreia do Sul e o Japão. O documento deixa claro que, perante a coerção exercida por Pequim junto de Taipei, o direto à autodefesa da ilha encontra-se integralmente garantido pelo Taiwan Relations Act de 1979.

No que diz respeito às preocupações internas, aposta-se na recuperação do tecido industrial americano de modo a colmatar as vulnerabilidades resultantes da disrupção das cadeias logísticas ocorridas durante a crise pandémica COVID19. O impulso protecionista em evidência durante a presidência de Trump não se dissolveu com a eleição de Joe Biden, que, para além de não reduzir as taxas alfandegárias à entrada de um conjunto de produtos europeus decretadas pelo seu antecessor, tem prosseguido uma política industrial que coloca desafios complexos às exportações oriundas da União Europeia.

Em 2016 debateu-se a eventual desagregação da NATO. Agora, na sequência da “operação militar especial” russa iniciada a 22 de Fevereiro de 2022, a discussão passou para outro plano. A Rússia passou a ser um perigo existencial, uma potência expansionista que ameaça o território europeu. O compromisso europeu com a NATO deixou de ser uma “figura de estilo”, passando a expressar as exigências da segurança partilhada. O imperativo de diminuir a dependência da Europa relativamente à energia russa deixou de ser tópico reservado a colóquios e a debates para se transformar numa prioridade estratégica a nível europeu. A disponibilidade de Putin para recorrer à violência transformou alertas em necessidades.

Importa, ainda, salientar que a aliança que apoia a defesa da integridade territorial da Ucrânia é custeada em aproximadamente 70 por cento pelos EUA. Não é, pois, por mero acaso que o National Security Strategy enfatiza a necessidade de os parceiros europeus assumirem uma fatia maior das despesas da NATO; isto é, os célebres 2 por cento do PIB acordados aquando da Cimeira do País de Gales, realizada em Setembro de 2014.

Dir-se-á, portanto, que nem a aposta estratégica no Indo-Pacífico, nem o regresso ao protecionismo, nem a exigência do aumento da contribuição europeia para NATO, nem as ameaças globais delineadas pelo National Security Strategy, resultam de preferências de este ou daquele presidente. Resultam, isso sim, das dinâmicas e dos elementos estruturais do sistema internacional contemporâneo.

Tanto assim é que podemos identificar uma surpreendente continuidade quanto às grandes linhas da política externa de Barack Obama, de Donald Trump e, agora, de Joe Biden. Quer isto dizer que as escolhas que Portugal e a Europa terão que enfrentar num continente em guerra, que procura aumentar a sua autonomia energética e encontrar uma resposta para os desafios comercias e tecnológicos colocados pela da República Popular da China, não dependerão de quem for o 47º presidente norte-americano. Pode, é certo, acelerar ou retardar as escolhas que temos pela frente, mas não alterará a natureza dessas mesmas escolhas. As coisas são como são.

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A sala oval e nós

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07.05.2024

Na primeira terça feira de Novembro deste ano realizar-se-ão as eleições presidenciais norte-americanas. À data de hoje, tudo indica que tanto o incumbente Joe Biden como o challenger Donald Trump podem ganhar a corrida à Casa Branca.

A inesperada vitória de Trump em 2016, tal como a disputada eleição de 2020 que resultou na eleição de Joe Biden, e na singular invasão do Capitólio, provocaram um debate global nunca antes verificado. Discutem-se personalidades. Salvo raras exceções, a discussão incide sobre quem gostaríamos que fosse Presidente dos Estados Unidos. A verdade é que nós – portugueses e europeus – podemos preferir este ou aquele candidato, mas a escolha não é nossa.

Julgo ser mais útil considerar aquilo que não depende da personalidade do Presidente dos EUA. As linhas mestras que orientam a política externa americana não se decidem em função da personalidade do homem ou mulher que, temporariamente, ocupam a Sala Oval. Por outras palavras, há uma dimensão estrutural da política externa que convém salientar.

Publicado a 12 de outubro de 2022, o National Security Strategy of the United States espelha a forma como Washington olha para o mundo. O documento define as prioridades, as alianças, os adversários e as respostas aos desafios........

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