Há anos aziagos na vida das aldeias.

O outono de 1966 ceifou em Mateus mais de 40 vidas, palavras ditas pelo Arcipreste José da Silva Faceira em dezembro desse mesmo ano.

As noites eram longas do amadurecido outono e as casas fartas de bebés que desesperados procuravam o leite das mães que elas próprias não o tinham. As mães eram heroínas, pois nas noites mal dormidas quase não mexiam as pálpebras nem os lábios e os rostos eram enrijados e secos. No entanto cantavam loas para adormecer os seus “anjinhos ladainhas de santos”, e os olhos cansados cerravam-se devagar sobre o rosto santo do bebé.

Ao fundo das cozinhas pintadas de fuligem, os grilos acolhiam-se no seu canto embalador com um doce trilado. O ronronar dos gatos infundia uma atmosfera de paz interior. Aquela manhã de outono estava fria. Os últimos figos intumesciam nas figueiras. Recolhiam-se as carumas. Cheirava a mosto, a celeiro e a lenha. As ruas estavam esborretadas de cocós de animais e de alguma canalha.

As videiras enviuvavam com a morte das folhas. O sino tocava triste a defuntos anunciando a morte de uma jovem que se envenenou na Raia. O vento cortava e as mulheres com os xailes pretos pelos ombros iam para a missa muito cedo perseguidas pelo fantasma da morte.

Chovia. Uma chuva miudinha e cadenciada, ajudada pelo inspirado som do bombardino do António Furão e pelo rufar nervoso de um músico aprendiz de caixa.

Ao longe, as nuvens do Marão vinham ameaçadoras sobre Mateus e num arranco de trovões, ouviam-se gritos de crianças a correrem para casa. Os pardais, privados dos divertimentos amorosos, choravam a cólera pelo impiedoso tempo.

Nesse outono distante as vidas se despediram levadas pelas doenças que atingiram os mais pobres e vulneráveis. Mas na vida tudo se renova e a aldeia voltou a ganhar o bulício próprio de um dia cheio de esperança. A vida… ai a vida são pingos de emoções que ora nos afagam, ora nos ameaçam e matam.

Tocam os sinos a defuntos. Um homem tinha morrido de cirrose e um outro asfixiado dentro de uma cuba de vinho no Palácio de Mateus. A tragédia foi chorada por toda a comunidade.

Em finais de dezembro o reverendíssimo Arcipreste anunciava do alto da sua cátedra que Mateus tinha perdido 85 almas do seu lindo rebanho e pediu muitas Ave-Marias e Padre Nossos pela salvação dos que partiram. A freguesia estava de luto cerrado. Os sinos, nesse ano, dobraram-se plangentes como nunca, quando anunciaram a morte trágica de Valter Silveira – meu irmão – em acidente de motorizada quando regressava da festa de Nossa Senhora de Guadalupe em Ponte.

QOSHE - Um ano de mortandade - Adérito Silveira
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Um ano de mortandade

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15.02.2024

Há anos aziagos na vida das aldeias.

O outono de 1966 ceifou em Mateus mais de 40 vidas, palavras ditas pelo Arcipreste José da Silva Faceira em dezembro desse mesmo ano.

As noites eram longas do amadurecido outono e as casas fartas de bebés que desesperados procuravam o leite das mães que elas próprias não o tinham. As mães eram heroínas, pois nas noites mal dormidas quase não mexiam as pálpebras nem os lábios e os rostos eram enrijados e secos. No entanto cantavam loas para adormecer os seus “anjinhos ladainhas de santos”, e os olhos cansados cerravam-se devagar sobre o rosto santo do bebé.

Ao fundo das cozinhas pintadas........

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