Dez da manhã de um 25 de dezembro bem fresquinho. Ali, no fundo da Avenida que tem o nome do herói vila-realense da Primeira Grande Guerra, mesmo encostadinha ao Café, naquele dia frio e encoberto, a senhora resolveu aconchegar-se e, sei lá, talvez, esperar que o café abrisse.

O telemóvel era a companhia que não chegou. Deixara-se cair, encostadinha à parede, e ficara de cócoras, com o corpo sobre os calcanhares.

Na minha primeira passagem, ouvia música, brasileira, julgo. Um sorriso, ainda saltava dos lábios, talvez porque lhe trouxera à memória momentos doces que já passaram.

Não voltarão?

Sabe-se lá. Há tantos momentos doces que não voltam…

Ao lado, num dos modernos bancos da novel Avenida, alguém… (alguém?… Não.) uma outra pessoa encontrara lugar mais cómodo para se sentar. A bengala ajudara-o a chegar; o cigarro, que momentos antes enrolara lentamente, sim, porque um cigarro deve ser enrolado lentamente, como que beneficiando do prazer que lhe há de trazer, o cigarro ajudava-o a passar aqueles minutos em que recuperaria as forças para continuar o seu deambular.

Um pouco mais à frente, mesmo ao lado do que foi o Hotel Tocaio, hoje, moderno edifício, de hospital privado – um daqueles que proliferam por aí, a tentar convencer-nos de que saúde no privado é que é bom, pessoa conhecida por se quedar nas proximidades da antiga São Cristóvão transformada em caça níqueis de consumidores distraídos, porque “sabe bem pagar tão pouco”, aquele senhor que costumo ver aguardar pela cestinha de plástico que a carrinha lhe troca pelas 12h00, todos os dias, caminhava lentamente, avenida acima, sei lá, talvez na esperança de que o Lopes estivesse aberto.

A passagem em frente à Camilo Castelo Branco, o velho Liceu, ocorreu-me o qualificativo de “noite almejada”, nas palavras do patrono daquela escola a referir-se à noite de consoada, aquela em que “o fidalgo do Toural, que lhe atirou confeitos a ela, e a ele dois rebuçados velhos à cara que pareciam de chumbo”.

Para as três pessoas com que me cruzei neste Dia de Natal, frio e encoberto, se não houve “rebuçados velhos” atirados à cara, parecia ter havido. A senhora acabara por ficar a dormitar, encostada à parede com o corpo sobre os calcanhares – será que a bateria do telemóvel se esgotou? O senhor que puxara do cigarro, enrolado lentamente, passava em frente à Esquadra da PSP, talvez vindo do único café aberto naquele dia, situado um pouco mais abaixo – tinha que haver um Café para acolher quem não conseguia passar sem aquele pequeno prazer, num dia em que outros lhe escapavam. O da cestinha de plástico lá recebera o seu “apoio domiciliário”, mesmo que o seu domicílio não seja muito normal – valha-nos o “Estado de bem-estar social”, também chamado “Estado-providência”.

QOSHE - Nem todos têm Natal - António Martinho
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Nem todos têm Natal

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11.01.2024

Dez da manhã de um 25 de dezembro bem fresquinho. Ali, no fundo da Avenida que tem o nome do herói vila-realense da Primeira Grande Guerra, mesmo encostadinha ao Café, naquele dia frio e encoberto, a senhora resolveu aconchegar-se e, sei lá, talvez, esperar que o café abrisse.

O telemóvel era a companhia que não chegou. Deixara-se cair, encostadinha à parede, e ficara de cócoras, com o corpo sobre os calcanhares.

Na minha primeira passagem, ouvia música, brasileira, julgo. Um sorriso, ainda saltava dos lábios, talvez porque lhe trouxera à memória momentos doces que já passaram.

Não voltarão?

Sabe-se lá. Há tantos momentos doces que não voltam…

Ao lado, num dos........

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