É já com o país mergulhado em época natalícia que vos escrevo esta última crónica de 2023.

Se a quadra convida a uma certa reflexão sobre os acontecimentos do ano, estou em crer que o assunto que dominará o imaginário e animará as discussões das famílias transmontanas (e restante país, imagino) durante o Natal, é este: A corrupção. Aposto o meu dedo mindinho que os processos do lítio em Trás-os-Montes (e em Montalegre, infelizmente) e do hidrogénio verde e centro de dados em Sines, ou o agora caso das gémeas com atrofia muscular espinhal, estão gravados a escopro e martelo na nossa mente coletiva. E estão-no porque é assim que funcionamos, porque estes assuntos nos estão próximos e porque são estes os temas que mais nos desequilibram. Dos assuntos da investigação “Influencer” falarei numa outra oportunidade, até porque ainda há muito por esclarecer. Vou-me focar apenas no assunto mais frugal e mais “simples” do Presidente da República e das gémeas. O tratamento destas duas crianças, recentemente naturalizadas portuguesas, e que, por não residirem em Portugal, provavelmente iriam ver o seu acesso ao medicamento vetado, não fosse a intervenção do Presidente da República e do seu filho, tem dominado este fim de ano.

O caso só é caso porque o medicamento é muito caro, e embora aparentemente não custe 4 milhões (pelos dados do Infarmed deve estar mais próximo dos 1,18 milhões), custa, ainda assim, um balúrdio. Estes e outros casos de corrupção em Portugal, para lá da componente judicial que poderão desencadear, são, a meu ver, a maior e mais importante ameaça ao regime democrático pós 25 de Abril. São-no porque convencem os cidadãos de que todo o poder está corrompido e que as instituições, mesmo que democráticas, não são legítimas. Para cada vez mais portugueses, demonstram que o processo de escolha dos nossos líderes, mesmo sendo eletivo, é controlado por uma elite poderosa e corrupta, o que o torna, de facto, ilegítimo. É fácil de ver aonde isto nos vai levar. Contudo, existe ainda um outro aspeto importante que o fator corrupção, ou cunha, escondem e nos impedem de escrutinar. O medicamento para o tratamento da atrofia muscular espinhal, o Zolgensma, foi desenvolvido, estou seguro, a partir de investigação realizada em institutos e universidades públicas, principalmente francesas, financiadas com dinheiro dos contribuintes e quiçá até português, através dos programas europeus de financiamento do Concelho de Investigação Europeu (ERC, na sua sigla em inglês). Como pode ser então que os estados, incluindo o Português, sustentem a evolução científica que permite o desenvolvimento de medicamentos revolucionários para depois pagarem valores astronómicos pela tecnologia que desenvolveram, depois de “embalada” pela indústria farmacêutica? Reparem, só existe necessidade de recorrer às cunhas e de corromper sistemas porque o desespero dos pais destas crianças os fez mover mundos e fundos para obterem o tratamento para as suas filhas, ao qual, obviamente, de outra forma não conseguiriam aceder. Contudo, a raiz do problema, está fácil de ver, continua por resolver e radica no claudicar da social-democracia e do estado social no altar do capitalismo mais disfuncional. E com isto me fico.

Feliz Natal e excelentes entradas!

QOSHE - Um conto de Natal, de Montalegre e Boticas a Sines, passando por São Bento e agora Belém - João Ferreira
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Um conto de Natal, de Montalegre e Boticas a Sines, passando por São Bento e agora Belém

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21.12.2023

É já com o país mergulhado em época natalícia que vos escrevo esta última crónica de 2023.

Se a quadra convida a uma certa reflexão sobre os acontecimentos do ano, estou em crer que o assunto que dominará o imaginário e animará as discussões das famílias transmontanas (e restante país, imagino) durante o Natal, é este: A corrupção. Aposto o meu dedo mindinho que os processos do lítio em Trás-os-Montes (e em Montalegre, infelizmente) e do hidrogénio verde e centro de dados em Sines, ou o agora caso das gémeas com atrofia muscular espinhal, estão gravados a escopro e martelo na nossa mente coletiva. E estão-no porque é assim que funcionamos, porque estes assuntos nos estão próximos e porque são estes os temas que mais nos desequilibram. Dos assuntos da investigação “Influencer” falarei numa outra........

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