Não conheço outra festa em que os dois actos estejam tão unidos, o amor profano seja ao mesmo tempo tão sagrado, e por isso, tão intenso e tão brilhante1.
Lídia Jorge

Ao longo dos séculos XVII e XVIII a «Festa da Senhora» – a principal festa anual celebrada em honra de Nossa Senhora da Piedade – era realizada, de forma solene, nas oitavas da Páscoa, dia em que a Igreja celebra a Nossa Senhora dos Prazeres, no complexo do Santuário. Havia missa de vésperas e missa solene. Cantava-se e tangia-se a harpa. E enfeitava-se a ermida e o seu exterior da melhor maneira possível.

Por essa altura ainda não havia a anual, festiva e muito concorrida condução da Imagem para a vila. No entanto, sempre que requerida a sua presença, esta era mandada, em reunião de vereação, ser conduzida para a vila. Eram as chamadas procissões extraordinárias. Uma prática relativamente corrente ao longo dos séculos XVIII e XIX. Pelo menos é isso que dizem as fontes documentais, uma vez que, ao longo dos vários anos que levo de investigação historiográfica sobre este culto mariano, conseguiu documentar a realização de nove procissões extraordinárias para um período compreendido entre 1733 e 1947 (três no século XVIII, cinco no século XIX e, finalmente, uma no século XX).

Ao longo dos séculos XVIII e XIX o concelho de Loulé era um grande centro rural, sendo a sua principal base económica a agricultura. Por tal, um dos meios de produção mais requeridos era a água, ou seja, a chuva que vinha do céu. A água das chuvas assumia um papel muito preponderante na vida económica e quotidiana das populações, uma vez que sem ela as colheitas morrem e os frutos estiolam, provocando a fome e a morte. E, desde sempre, foi assim – a ligação das populações campesinas à importância da água para a irrigação dos terrenos agrícolas. As populações pediam misericórdia, isto é, água em tempo de seca. Deste modo, é sem surpresa que seis das nove procissões extraordinárias que consegui encontrar na documentação que se conservou até aos nossos dias terem sido convocadas, justamente, para as chamadas preces «ad petendam pluviam». Foi isso que se sucedeu, pelo menos, em seis ocasiões: três ao longo do século XVIII (1733, 1750 e 1773) e as restantes três ao longo do século XIX (1849, 1896 e 1899).

Mas a Imagem também foi conduzida, de forma extraordinária para a vila, por outros motivos. Todos eles diferentes do anterior: por forma a se realizarem «demonstrações de júbilo» pelo casamento real D. Maria II, em 1835; em virtude de um forte tremor de terra, em 1856; e, finalmente, para se comemorar a vinda da Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima a Loulé, em 1947.

E se mais não houve foi porque o bispado do Algarve não as autorizou, conforme aconteceu, por exemplo em 1878, quando o prelado da diocese algarvia não satisfez as pretensões de uma comissão de trabalhadores que queria trazer a Imagem para a vila, em sinal de agradecimento por terem tido trabalho e consequentemente uma fonte de rendimento, após a edificação da ponte e da estrada que faz a ligação de Loulé a Boliqueime.

Até ao início do século XIX, isto é, pelo menos até 1805, não se realizava, regularmente, a condução, em procissão, da Imagem para a vila. A «Festa da Senhora», como na altura era denominada, celebrava-se, integralmente, no recinto no Santuário.

Porém, por volta da década de 1830, a Imagem começa a vir, de forma anual, para a vila e, com o passar dos anos, sempre com uma maior participação de fiéis, reflectindo-se, essa massificação, nas receitas amealhadas pela Mordomia nos dias festivos. Que, entre a década de 1830 e 1904, não mais pararam de crescer. Facto para o qual muito terá contribuído o elevado crescimento demográfico da vila e do concelho de Loulé ao longo do século XIX, em geral, e da segunda metade desse século, em particular. Uma vez que entre 1802 e 1900 a população residente na vila não parou de crescer. Os números são verdadeiramente impressionantes e podem ser divididos em dois grandes períodos: um primeiro que vai desde 1802 a 1857, em que a vila passa dos 7 368 para os 8 393 habitantes (taxa de crescimento populacional de 13,91%); e um segundo período que vai desde 1857 a 1900, em que a população residente na vila passa dos 8 393 para os 22 478 habitantes (taxa de crescimento populacional 167,82%). Que catapultam Loulé para a vila e o concelho mais populoso em todo o Algarve.

De «Festa da Senhora», ao longo dos séculos XVII e XVIII, passa a «Festa da Piedade», ao longo do século XIX. Alteração de denominação. Mas não só. Alteram-se também as celebrações e o percurso da procissão. Que deixa de celebrar-se no recinto do Santuário para passar a celebrar-se na vila. A Imagem começa a vir, todos os anos e de forma regular, para a vila. Ora, se vem para a vila tem também que regressar à ermida. E, deste modo, surgem as duas grandes festividades anuais celebradas em tempo de Páscoa: a denominada «Festa Pequena», este ano rebaptizada de «Festa da Páscoa» (celebrada no Domingo de Páscoa); e a denominada «Festa Grande» (celebrada na oitava da Páscoa, até 1893; passando, desde 1894, a ser celebrada no Terceiro Domingo de Páscoa, conforme hoje em dia). Foi, assim, que os louletanos inventaram as duas Festas anuais.

Se a vila e o concelho viam crescer a população residente, as manifestações religiosas com a Imagem de Nossa Senhora da Piedade também. A participação popular cresce. A necessidade física de subir, todos os anos, a íngreme ladeira, ajuda ao espectáculo. O espectáculo alia-se à fé. Fé e espectáculo, espectáculo e fé: duas componentes sempre associadas à Festa. E a Festa começa a adquirir projecção inter-regional. Transborda a província. E chega a outras províncias. Só assim se compreende o facto de ao longo da década de 1910 começarem a surgir na imprensa local e regional os primeiros anúncios a excursões de comboio organizadas propositadamente para quem se quisesse deslocar até à «Festa da Piedade».

A «direcção dos caminhos-de-ferro do Sul e do Sueste» anunciava, anualmente, bilhetes especiais de ida-e-volta, com tarifas a preços muito convidativos, de excursões a saírem das «estações de Beja», assim como «de todas as estações e apeadeiros da linha do Algarve»2 . À semelhança do que já tinha acontecido, no último quartel do século XIX, com os mais populares santuários minhotos, através do início da exploração da linha ferroviária Porto – Braga, em Maio 1875. Era o progresso tecnológico (comboio) ao serviço da Fé.

As estimativas que se conhecem quanto ao número de participantes são invulgares. Verdadeiramente únicas em contexto regional. Mais de 8 000 pessoas, numa procissão extraordinária celebrada em 1896; mais de 20 000 pessoas, na Festa Grande de 1895; 8 a 10 000 pessoas, na Festa Grande de 1899; 10 000 pessoas, na Festa Pequena de 1901. Números verdadeiramente invulgares para uma romaria, ainda para mais celebrada a Sul do Tejo, região onde, social e culturalmente, a religião e as respectivas manifestações religiosas menos se faziam notar. Mas, sobretudo, com uma fé vivida através de um entusiasmo popular que não é muito comum encontrar em terras do Sul, como muito bem fez notar Joaquim Romero Magalhães.

João Romero Chagas Aleixo | Historiador

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Nossa Senhora da Piedade de Loulé: da primitiva «Festa da Senhora» à criação da «Festa da Piedade»

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03.04.2024

Não conheço outra festa em que os dois actos estejam tão unidos, o amor profano seja ao mesmo tempo tão sagrado, e por isso, tão intenso e tão brilhante1.
Lídia Jorge

Ao longo dos séculos XVII e XVIII a «Festa da Senhora» – a principal festa anual celebrada em honra de Nossa Senhora da Piedade – era realizada, de forma solene, nas oitavas da Páscoa, dia em que a Igreja celebra a Nossa Senhora dos Prazeres, no complexo do Santuário. Havia missa de vésperas e missa solene. Cantava-se e tangia-se a harpa. E enfeitava-se a ermida e o seu exterior da melhor maneira possível.

Por essa altura ainda não havia a anual, festiva e muito concorrida condução da Imagem para a vila. No entanto, sempre que requerida a sua presença, esta era mandada, em reunião de vereação, ser conduzida para a vila. Eram as chamadas procissões extraordinárias. Uma prática relativamente corrente ao longo dos séculos XVIII e XIX. Pelo menos é isso que dizem as fontes documentais, uma vez que, ao longo dos vários anos que levo de investigação historiográfica sobre este culto mariano, conseguiu documentar a realização de nove procissões extraordinárias para um período compreendido entre 1733 e 1947 (três no século XVIII, cinco no século XIX e, finalmente, uma no século XX).

Ao longo dos séculos XVIII e XIX o concelho de Loulé era um grande centro rural, sendo a sua principal base económica a agricultura. Por tal, um dos meios de produção mais requeridos era a água, ou seja, a chuva que vinha do céu. A água das chuvas assumia um papel muito preponderante na vida económica e quotidiana das populações, uma vez que sem ela as colheitas morrem e os frutos estiolam, provocando a fome e a morte. E, desde sempre, foi assim – a ligação das populações campesinas à importância da água para a irrigação dos terrenos........

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