Enrique Huelva Unternbäumen*

Os termos diversidade e inclusão marcaram profundamente o debate e as políticas da educação superior e, especialmente, das universidades públicas, nas últimas décadas. Esses termos designam os esforços empreendidos pelas instituições, pelo legislador e por grande parte da sociedade civil para que a composição social interna das comunidades universitárias se aproxime mais à composição da sociedade como um todo. As políticas de cotas e as ações afirmativas se mostraram ferramentas efetivas para impulsionar essa aproximação com relação à composição socioeconômica, étnico-racial e de gênero.

Assim, por exemplo, na Universidade de Brasília (UnB), que instituiu, como uma das pioneiras, já em 2003, as cotas para estudantes negros na graduação, 48,7 % dos estudantes de graduação se identificam como negros (35,7% como pardos e 13,0% como pretos). Na pós-graduação, que teve a sua política de ações afirmativas implementada a partir de 2020, a identificação dos discentes como negros apresenta um percentual ligeiramente inferior: 45,2% (11,8% pretos e 33,4% pardos, respectivamente). Os valores caem significativamente, porém, se olharmos a composição do corpo docente. Apenas 24,9% dos professores se declaram negros (4% pretos e 20,9% pardos, respectivamente). Se considerarmos, como valor de referência, que, no Distrito Federal, as pessoas negras representam 57,4% da população, não é difícil identificar sobre quais aspectos deverão incidir futuras políticas de incentivo à diversidade e inclusão.

Contudo, no âmbito da universidade, a diversidade e a inclusão vão muito além da composição interna da comunidade. Todo processo de ampliação da diversidade representa (ou deveria representar) também uma ampliação da diversidade epistemológica. Cada novo grupo pode trazer consigo, em maior ou menor medida, interesse em obter conhecimento sobre determinados tópicos relevantes para o grupo, negligenciados ou pouco abordados até o momento pelas práticas acadêmicas, formas particulares de construir conhecimento e se relacionar com ele e/ou estratégias perceptivas e neurocognitivas próprias. E pode trazer consigo também formas próprias de corporeidade, de afetividade, de ser, de estar e de interagir com os outros dentro da comunidade universitária.

A diversificação epistemológica advinda das epistemologias feministas, negras, indígenas (com toda a sua imensa variedade e riqueza), ribeirinhas, periféricas, trans, surdas, surdocegas, autistas, idosas, de pessoas com altas habilidades e superdotação etc. constitui um potencial de enriquecimento imprescindível para as nossas universidades, bem como uma oportunidade ímpar de, a partir desse enriquecimento, contribuir para a construção de uma sociedade menos preconceituosa e excludente.

O pleno desenvolvimento desse potencial está sujeito ao cumprimento de algumas condições essenciais. Uma delas é a existência de estruturas e formas de organização acadêmicas que permitam e fomentem o enriquecimento epistemológico interno. A existência de núcleos, centros, programas de pós-graduação, redes de pesquisa, revistas científicas especializadas etc. que se constituam a partir ou ao redor de epistemologias como as acima mencionadas constitui um ponto de partida fundamental.

Apesar da importância dessa primeira condição, ela, por si só, é insuficiente. Para conseguir um verdadeiro enriquecimento epistemológico da universidade, é necessário o efeito de mecanismos e ações que evitem um encapsulamento epistemológico, isto é, que previnam que a diversidade fique reclusa nos espaços acadêmicos da sua criação. Três elementos me parecem fundamentais para alcançar esse objetivo.

O primeiro é a construção adequada de transversalidades. Penso aqui, por exemplo, na inserção de disciplinas e outros componentes acadêmicos nas estruturas curriculares dos cursos que atendam adequadamente à educação das relações étnico-raciais, como disposto nas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, nas Resoluções CNE/CP nº 1/2004 e CNE/CP nº 1/2012, pelo Parecer CNE/CP nº 8/2012 e normativos posteriores, e que reflitam o estado da arte das pesquisas sobre a temática.

O segundo é, seguramente, mais difícil de pôr em prática. Um enriquecimento epistemológico não pode significar, por óbvio, a substituição de uma epistemologia por outra, nem prescindir de todo o conhecimento construído em cada uma das disciplinas científicas ao longo das décadas. O caminho só pode ser a criação de espaços de diálogo epistemológico efetivo. Para tal, é necessário possibilitar o acesso das novas epistemologias nos espaços acadêmicos povoados com as tradicionais (e, em muitos casos, hegemônicas) e promover práticas dialógicas baseadas na ressonância epistemológica recíproca. Uma relação de ressonância epistemológica só se dá quando todas e cada uma das epistemologias (e os sujeitos epistemológicos) falam com a sua própria voz, em condição simétrica, de forma autoconsistente, ao mesmo tempo que permanecem abertas o suficiente para serem alcançadas pelos conhecimentos e argumentos das outras. Avalio que disso ainda estamos bastante distantes.

Finalmente, precisamos também de uma mudança cultural, que passa, inexoravelmente, por um longo processo de aprendizado. Ainda são, lamentavelmente, muitos, por exemplo, os membros das nossas comunidades universitárias que reagem com incredulidade quando ouvem que surdocegos concluíram um curso de graduação e são, agora, estudantes de pós-graduação. Ou aqueles que têm dificuldades em aceitar que os povos indígenas podem nos ensinar muito sobre preservação, sustentabilidade e, de um modo geral, sobre a relação do ser humano com a natureza. A conscientização sobre a existência de outras formas de conhecimento e da sua construção neurológica, cognitiva e social, a aceitação de que essas formas são equivalentes às nossas próprias e consequente relativização dos nossos pressupostos continuam sendo o maior dos desafios.

*Professor, doutor e vice-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

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Dimensões e desafios da diversidade e da inclusão na universidade

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09.04.2024

Enrique Huelva Unternbäumen*

Os termos diversidade e inclusão marcaram profundamente o debate e as políticas da educação superior e, especialmente, das universidades públicas, nas últimas décadas. Esses termos designam os esforços empreendidos pelas instituições, pelo legislador e por grande parte da sociedade civil para que a composição social interna das comunidades universitárias se aproxime mais à composição da sociedade como um todo. As políticas de cotas e as ações afirmativas se mostraram ferramentas efetivas para impulsionar essa aproximação com relação à composição socioeconômica, étnico-racial e de gênero.

Assim, por exemplo, na Universidade de Brasília (UnB), que instituiu, como uma das pioneiras, já em 2003, as cotas para estudantes negros na graduação, 48,7 % dos estudantes de graduação se identificam como negros (35,7% como pardos e 13,0% como pretos). Na pós-graduação, que teve a sua política de ações afirmativas implementada a partir de 2020, a identificação dos discentes como negros apresenta um percentual ligeiramente inferior: 45,2% (11,8% pretos e 33,4% pardos, respectivamente). Os valores caem significativamente, porém, se olharmos a composição do corpo docente. Apenas 24,9% dos professores se declaram negros (4% pretos e 20,9% pardos, respectivamente). Se considerarmos, como valor de referência, que, no Distrito Federal, as pessoas negras representam 57,4% da população, não é difícil identificar sobre quais aspectos deverão incidir futuras políticas de incentivo à diversidade e........

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