Se tivermos sorte, começamos por perder os avós, velhinhos, dependentes da ternura que plantaram e viram florir no aconchego das últimas partilhas, mais ou menos doridas. É o primeiro cortar de carne, pedaço que se enterra para os bichos comerem devagarinho. E comem, devagarinho, uma a uma as imagens desvanecem, é uma história que se recorta, uma gargalhada que vai ficando longe até perder existência sonora, um par de mãos que já não emana calor. E o cheiro das roupas guardadas que se vai amadeirando.
Depois talvez um conhecido a quem a fatalidade elegeu. Pobre coitado.
Há azares que não se vislumbram no horizonte de ninguém. Não se previnem. Surpreendem. Mas ainda assim está um pouco longe.
Toca-nos, move-nos, mas não nos fere.

Então um amigo mais próximo deixa as chávenas de café vazias nos armários, como as cadeiras sem corpo e os serões sem rosto.
Um abanão que nos deixa o chão dormente, já não é seguro. Sabemos que a roleta roda já mais perto de nós. E depois outro e mais outro.
Uma roda que se começa a desenhar, um círculo que se fecha com cada um. Um colar de pérolas, para ostentação da memória, vai-se enfileirando. Se muito comprido, dá-se uma volta e outra mais no pescoço.
E vai apertando. Vai lembrando, cada um com o seu rosto, o seu jeito, o seu laço de vivências.
Se tivermos sorte. Envelhecer é uma sorte. Poder colecionar mortos é a dor de lhes sobreviver e a responsabilidade de lhes contar a memória, prolongar a vida.

Que o digam os sobreviventes dos campos de concentração, os sobreviventes dos bombardeamentos nas cidades alemãs antes do término da Segunda Guerra Mundial, os sobreviventes dos testes nucleares da Polinésia Francesa, os sobreviventes da Síria, lembrar Alepo, os sobreviventes da Ucrânia, dos ataques indiscriminados e interesseiros de Cabo Delgado em Moçambique, os sobreviventes israelitas do ataque de 7 de Outubro passado e os que conseguirem sobreviver ainda na Faixa de Gaza.
Não lhes resta só a responsabilidade da memória a eternizar, mas antes um vazio feito perpétuo ajuste de contas. Como uma roda, um moinho de vento sem sossego, um trator bulldozer que tudo traga para abrir caminho enquanto a dor for combustível.
Nada lhes resta além do dar voz ao sofrimento, corpo à mágoa. Quando a dor é tão carne exposta, ferida viva cravejada com sal, explodem estilhaços para todos os lados.

Cerca de 1,5 milhões de crianças foram assassinadas durante o Holocausto. Na Ucrânia estima-se que 7,8 milhões de crianças e adolescentes tenham sido privados da sua infância e adolescência, de tempo com amigos e familiares, de uma vida pacífica (Unicef). De uma casa, de uma escola a que chamem sua. Os seus fantasmas irão perpetuar-se, naturalmente, pelos seus filhos.
O número de crianças mortas na Faixa de Gaza em 4 meses de guerra, de Outubro de 2023 a Fevereiro de 2024, superou o total de crianças mortas em todas as guerras do mundo durante 4 anos, de 2019 a 2022 (ONU).
Às vezes precisamos dos números em perspetiva, como uma chapada.
Uma certeza: a evolução humana é nula.

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“Envelhecer é coleccionar mortos”

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15.03.2024

Se tivermos sorte, começamos por perder os avós, velhinhos, dependentes da ternura que plantaram e viram florir no aconchego das últimas partilhas, mais ou menos doridas. É o primeiro cortar de carne, pedaço que se enterra para os bichos comerem devagarinho. E comem, devagarinho, uma a uma as imagens desvanecem, é uma história que se recorta, uma gargalhada que vai ficando longe até perder existência sonora, um par de mãos que já não emana calor. E o cheiro das roupas guardadas que se vai amadeirando.
Depois talvez um conhecido a quem a fatalidade elegeu. Pobre coitado.
Há azares que não se vislumbram no horizonte de ninguém. Não se previnem. Surpreendem. Mas ainda assim está um pouco longe.
Toca-nos, move-nos, mas não nos fere.

Então um amigo mais próximo deixa as chávenas de café vazias nos armários, como as........

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