Vive-se uma circunstância de apologia do politicamente correcto, da higienização e da abrangência social, da generalização e exposição dos direitos individuais numa realidade que, sem querer questionar, qualificar ou reflectir sobre a pertinência, justeza, bondade e desejo de tal (não é esse o fim do texto em causa) que tudo parece extremar e exponenciar, ora reforçando a necessidade de aprofundar determinadas mudanças e direitos, ora visibilizando exageros infundados e conflituosos, num balanço que aparenta deixar poucos totalmente insatisfeitos, muito resignado a que algo já se fez e que ou que no essencial ainda se encontra protegido. Seja como for, acredita-se que, a todos e à maneira de cada um, invade a vontade de melhor fazer o Bem e de melhor evitar o Mal.

Nesta circunstância, o café sem cafeina, o vinho sem álcool, o doce sem açúcar ou o tabaco sem nicotina, entre tantos outros e de tantas naturezas e impactos sociais, económicos, comportamentais, parecem ser exemplos quotidianos de um processo que não distingue a essência do acessório, o que é inato e parte da identidade intrínseca do que é conjuntural e estrutural, o que é equilíbrio e contenção, num processo de radicalidade e expurgação que, pura e simplesmente, domina, contém e se sobrepõe ao “mal”, eliminando-o, entendendo-o com “mal absoluto”, que nada traz de positivo, esquecendo que, tantas vezes, não se trata de “mal”, mas sim do excesso, omitindo que, outras tantas vezes, o equilíbrio sábio entre o desejo, a possibilidade e a necessidade produz a dose certa “para cada coisa”.
No campo do urbanismo, ainda mais agora, com o aproximar inexorável e, aparentemente, inadiável do “simplex urbanístico” este processo de higienização e expurgação “do mal” parece ter tomado conta da realidade disciplinar e quotidiana, numa verdade que nos deveria interrogar do que, verdadeiramente, trata este “simplex urbanístico”, do que procura atingir e corrigir?

O “simplex urbanístico” em causa (ou “simplex no urbanismo”, designações não exactamente com o mesmo significado, mas que, para efeitos de simplificação, se entendem consensualmente idênticas) é um conjunto de alterações a vários diplomas legais que visa expurgar, agilizar, facilitar, objectivar um conjunto de regras, prazos e procedimentos tendentes a melhor operacionalizar a essência da legislação aplicável: o controlo prévio.
E este afã facilitador, expurgador e agilizador, esta vontade de melhorar, optimizar e operacionalizar, este ímpeto de motivar e envolver, transforma-se numa acção que direcciona a eliminação da acção prévia, num aparente esquecimento da natureza e objectivo da legislação que tudo suporta. Ou seja, tal como o vinho que não existe verdadeiramente sem a sua essência (álcool) nem o café sem o seu componente central (cafeína), também esta legislação e este controlo não fazem sentido sem o seu carácter prévio, isto é, antes de verdadeiramente acontecer, de transformar o território, pressupondo que “tudo correrá bem” e imputando à acção subsequente (fiscalização sucessiva) o encargo de tudo verificar e cuidar (sem, como tantas vezes acontece, criar as condições necessárias a uma efectiva e real fiscalização).

Como (quase) sempre, mais do mesmo: corre-se atrás da melhor legislação, apressa-se a reagir e a salvaguardar aquelas que se julgam as melhores regras, os melhores princípios, os ideais como norma e esquece-se de que “sem meios adequados não há fins bons”, omite-se de que “só há assertividade se se ajustar a resposta ao objectivo da pergunta” desvia-se da solução, contornando as dificuldades, não as superando “de frente”.
Defende-se o “simplex urbanístico” como ferramenta e meio de simplificação e desburocratização (como sinónimo de eliminação do excesso de cuidado e verificação, do controlo e desperdício), defende-se a promoção e facilitação da “urbanização e edificação” (promovendo maior previsibilidade temporal e maior segurança regulamentar), defende-se a valorização da fiscalização sucessiva e responsabilidade técnica (reconhecendo a valia de quem exerce a actividade)… mas sem esquecer, omitir ou enfrentar a essência da actividade: o controlo prévio das acções de urbanização e edificação para melhor assegurar uma correcta transformação do território. E, assim, melhor atingir o que todos desejam: fazer o que tem de ser feito. Fazer bem o que se faz. Consequentemente, melhor transformando o território de todos nós!

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“Ainda o simplex …”

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05.02.2024

Vive-se uma circunstância de apologia do politicamente correcto, da higienização e da abrangência social, da generalização e exposição dos direitos individuais numa realidade que, sem querer questionar, qualificar ou reflectir sobre a pertinência, justeza, bondade e desejo de tal (não é esse o fim do texto em causa) que tudo parece extremar e exponenciar, ora reforçando a necessidade de aprofundar determinadas mudanças e direitos, ora visibilizando exageros infundados e conflituosos, num balanço que aparenta deixar poucos totalmente insatisfeitos, muito resignado a que algo já se fez e que ou que no essencial ainda se encontra protegido. Seja como for, acredita-se que, a todos e à maneira de cada um, invade a vontade de melhor fazer o Bem e de melhor evitar o Mal.

Nesta circunstância, o café sem cafeina, o vinho sem álcool, o doce sem açúcar ou o tabaco sem nicotina, entre tantos outros e de tantas naturezas e impactos sociais, económicos, comportamentais, parecem ser exemplos quotidianos de um processo que não distingue a essência do acessório, o que é inato e parte da identidade intrínseca do que é conjuntural e estrutural, o que é equilíbrio e contenção, num processo de........

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