No dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional das Mulheres. Como em todos os anos, sucedem-se os jantares, as ofertas de flores, e em alguns países (Angola, por exemplo) chega a ser feriado nacional.
A verdade, porém, é que por entre a réplica anual destas efemérides, vai-se diluindo o sentido que as fundamenta. Ora, é muito importante que os nossos filhos e as nossas filhas compreendam porque é que em 2024 ainda se celebra o dia internacional da mulher. E esse exercício faz-se de várias formas. Uma é olhando para a condição real das mulheres no mundo, na Europa, e em Portugal. Outra é olhando para o passado, para os “antes” e os “depois” de que a história está repleta no que tange ao lugar da mulher no espaço público, aos seus direitos e à sua dignidade.
Ao ver o antes e o depois num determinado contexto histórico, numa dada sociedade, é importante ajudar os nossos filhos e filhas a reconhecer os avanços, as conquistas, as lutas travadas, mas também a fragilidade de todos esses percursos, e que a primeira forma de análise (centrada no presente) ajuda aliás a consubstanciar. Ora, perto de celebrar 50 anos do 25 de Abril, temos uma excelente oportunidade para falar do “antes” e do “depois” que este marco da nossa história recente significou em matéria de direitos das mulheres.
Há 50 anos, as nossas mulheres estavam essencialmente restringidas ao espaço doméstico, e o próprio Código Civil determinava que pertencia à mulher o governo doméstico, durante a vida do casal. As mulheres que trabalhavam estavam quase sempre na economia informal, ou seja, sobreviviam como jornaleiras (trabalhando à jorna nos campos, ou à jeira como também se dizia), ou como criadas de servir, obviamente sem contratos formais de trabalho, sem direitos, sem descontos, e sujeitas a todo o tipo de arbitrariedades (por exemplo, ter como folga semanal apenas o Domingo à tarde). As mulheres que estavam no mercado laboral formal (como operárias, por exemplo) ganhavam em média menos 40% que os homens.
E já agora, recordemos também que a lei do contrato individual de trabalho permitia que o marido pudesse proibir a mulher de trabalhar fora de casa e se ela o fizesse sem o seu consentimento, o marido podia rescindir o contrato por ela.
Há 50 anos, os médicos não tinham autorização para receitar contracetivos orais, a não ser a título terapêutico, sendo proibida a sua publicidade. As mulheres não tinham o direito de tomar contracetivos contra a vontade do marido, e poderia ser também fundamento para o pedido de divórcio ou de separação judicial pelo marido.
As mães solteiras, essas, não tinham qualquer tipo de proteção legal.
Há 50 anos, as mulheres não tinham acesso às carreiras diplomáticas, nem à magistratura, nem à polícia; até 1969 não podiam viajar para fora do país sem autorização expressa do marido que, segundo o Código Civil era o chefe de família e o administrador dos bens comuns do casal, dos bens próprios da mulher e dos bens dos filhos menores. As mulheres apenas podiam votar se fossem ‘chefes de família’ (viúvas) e tivessem pelo menos o ensino secundário ou superior.
E tanto mais que aqui se poderia deixar escrito.
No ‘depois’ que se seguiu, ou seja, neste período que perfaz agora 50 anos de democracia, a posição da mulher na sociedade portuguesa foi conhecendo uma transformação cada vez maior, e para essa transformação, diga-se a bem da verdade, muito contribuiu o impulso legislativo que sempre aconteceu no contexto dos governos socialistas.
Olhando apenas para o passado recente, recordo por exemplo, a criação em 2018 do programa para a Conciliação da Vida Profissional, Pessoal e Familiar, bem antes de ter surgido a diretiva europeia sobre a conciliação da vida familiar e profissional. O Programa Creche Feliz, ou até mesmo a Lei do Estatuto do cuidador informal criada em 2019. E refiro estes três exemplos porque para além de terem impacto sobre as famílias e as crianças, têm um particular impacto na vida das mulheres. São elas, quase sempre elas, as mais prejudicadas no retorno ao mercado de trabalho quando decidem ser mães, ou quando têm de cuidar dos filhos menores, ou dos filhos com alguma deficiência, ou dos pais e avós idosos. E isto também são formas de promover os direitos das mulheres.
Foi também sob governação socialista que surgiu em 2017 a Lei da Paridade, que introduziu as quotas de género nas administrações, nos órgãos de fiscalização das empresas públicas e das empresas cotadas em bolsa, bem antes da diretiva europeia nessa matéria e que apareceria muito graças à força que lhe foi dada pela Presidência Portuguesa da União Europeia em 2021.
Também foi sob governação socialista que emergiu a lei das quotas para mulheres na representação dos partidos políticos (a lei dos 33%) que remonta a 2006. E por fim, não posso deixar de referir a lei que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez, de 2007, e que resultou de vontade popular expressa em referendo.
Talvez alguns leitores já estejam incomodados com tantas referências aos governos socialistas. Mas, convenhamos, o seu a seu dono. E há que pensar também se o que os incomoda, pelo menos em alguns casos, não será antes o estarmos a falar de direitos das mulheres, incluindo direitos reprodutivos. Não me espantaria que estivesse aí o epicentro do incómodo, pois, como já escrevi, nunca nada está garantido, e a maior ameaça aos direitos das mulheres continua precisamente a estar nesta incapacidade de produzirmos uma efetiva revolução de mentalidades. Fica esta tarefa para os nossos filhos e para as nossas filhas nos próximos 50 anos. Mas para tal, é preciso que conheçam a História e que nunca tomem nenhum direito como garantido.

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“Direitos das Mulheres - nenhuma...”

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22.03.2024

No dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional das Mulheres. Como em todos os anos, sucedem-se os jantares, as ofertas de flores, e em alguns países (Angola, por exemplo) chega a ser feriado nacional.
A verdade, porém, é que por entre a réplica anual destas efemérides, vai-se diluindo o sentido que as fundamenta. Ora, é muito importante que os nossos filhos e as nossas filhas compreendam porque é que em 2024 ainda se celebra o dia internacional da mulher. E esse exercício faz-se de várias formas. Uma é olhando para a condição real das mulheres no mundo, na Europa, e em Portugal. Outra é olhando para o passado, para os “antes” e os “depois” de que a história está repleta no que tange ao lugar da mulher no espaço público, aos seus direitos e à sua dignidade.
Ao ver o antes e o depois num determinado contexto histórico, numa dada sociedade, é importante ajudar os nossos filhos e filhas a reconhecer os avanços, as conquistas, as lutas travadas, mas também a fragilidade de todos esses percursos, e que a primeira forma de análise (centrada no presente) ajuda aliás a consubstanciar. Ora, perto de celebrar 50 anos do 25 de Abril, temos uma excelente oportunidade para falar do “antes” e do “depois” que este marco da nossa história recente significou em matéria de direitos das mulheres.
Há 50 anos, as nossas mulheres estavam essencialmente restringidas ao espaço doméstico, e o próprio Código Civil determinava que pertencia à mulher o governo doméstico, durante a vida do........

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