Enfrentemos o elefante na sala. O Chega não é um partido, é uma intejeição que tem no seu nome a suprema limitação da sua ação… ou inação. Um movimento, um grupo, uma ideia que se sustenta na negativa, jamais poderá ter um contributo positivo para a comunidade a que se pretende destinar.
No seu símbolo oficial a palavra “Chega” aparece cobrindo o território de Portugal. A ideia é clara, a derivação freudiana também. Um conjunto de gente, farta de Portugal que só quer partilhar a sua frustração e elevá-la a manifesto político.
Na doença do regime, o Chega não é nem pretende ser a cura, mas antes o parasita que se alimenta da insuficiência do corpo democrático para o rechaçar. O Chega não vive na decência, mas no lugar mais lúgubre da indecência, o do aproveitamento da fragilidade, da inconsequência e da desesperança.
Na cura, o Chega não toma parte. As suas hipóteses de sobrevivência são inversamente proporcionais às da recuperação da democracia.
O que é, então, o Chega?
Um grupo de descontentes, inaptos e ineptos políticos que, sem ter onde se fixar no espectro partidário português, se prendem a um homem como a um messias, pior, como a um pai que deles cuidará enquanto for preciso. O pai tirano que sempre manda, cuja fotografia idolatram e cujas palavras absorvem sem a menor réstia de crítica ou censura.
Não tentemos dourar a pílula, justificando a adesão popular a uma proposta que coloca no centro da mensagem política a falência de todos os demais. Não, os votos no Chega não merecem o mesmo respeito que todos os restantes, não porque os portugueses que nele votam sejam menos do que todos os outros, mas porque o que decorre desses votos não é solução, mas repulsa. O Chega não quer, nem quis e nunca quererá jogar o jogo democrático, salvo enquanto tal for indispensável à sua existência.
Cresçamos como povo e como eleitores e saibamos ver-nos ao espelho, confrontando o que de pior sai das nossas almas, mas sabendo com total clareza que o Chega é o que é e que quem nele vota não se pode esconder na ignorância.
Medo, sim, tenho medo de um país que entenda que a resposta a problemas complexos reside em diatribes ultra-simplificadas que oferecem o céu e o inferno pelo mesmo preço a todos e a nenhum. Medo, sim, da normalização da anormalidade, num país que de brandos costumes se transforma numa nação de duros curtumes. Um conjunto de couraças cínicas e insensíveis ao invés de cidadãos de pleno direito.
É tempo de dizer aos portugueses que o “falhanço” dos partidos tradicionais é o falhanço deles próprios, que desistir e bater em retirada para o campo do populismo mais básico apenas acelera o processo de putrefação da democracia. O oportunismo como política é a tradução mais crua da bestialidade do ser humano, é o regresso ao estado natural mais puro, onde cada um se ocupa de sobreviver sem qualquer respeito pela ideia de humanidade, onde a comunidade deixa de fazer sentido e as ideias expressam em horas o seu prazo de validade. É onde a razão se esconde e o sentimento, o impulso e a irracionalidade triunfam como drogas a cuja dependência não conseguimos fugir.
E o final? O final é triste, infinitamente mais triste do que uma sociedade de corruptos ou de incompetentes, é o final da cultura, não da erudita, mas a do povo, do país e da nação que até aqui geramos e gerimos.
É a confusão entre ética e moral, lei e religião, raça e origem.
Os adultos na sala têm de se levantar e gritar nos ouvidos dos portugueses que o que ali está é o que parece e que nenhum argumento racional pode justificar entregar o voto à negação do país.
Anna Harendt escreveu sobre a banalidade do mal, como é sabido, a propósito do julgamento em Israel de Adolf Eichman, um dos executores das deportações de judeus para campos de concentração durante o nazismo alemão. Nessa obra discorre profusamente sobre como é da inexistência de raciocínio crítico que nasce a inconsciência do mal, que triunfa a natureza mais abjeta do ser humano e que se criam as condições para que o terror triunfe.
Dessa obra não saem inocentes, mas um corpo ordenado de ideias que demonstram como cada um de nós, sem grande dificuldade, se pode tornar um agente perpetrador das maiores obscenidades.
A raiz da maldade, da intolerância e da desumanidade está justamente em cada um de nós, basta não pensar. De resto, o exemplo do líder do Chega é revelador disso mesmo, ou não fosse a sua tese de doutoramento (documento de reflexão por excelência) o total oposto do que defende enquanto político.
Agora que se entra em período oficioso de campanha, será bom que se lembre ao povo português esta máxima, porque não há desculpas para a estupidez, sobretudo num tempo em que a informação está ao alcance de todos e à distância de um clique. A ilusão não é um risco, mas uma escolha. Consciente e reveladora daqueles que nela decidem abrigar-se.

Últimas Ideias

22 Janeiro 2024

Jornalismo em crise

22 Janeiro 2024

“Não é bem assim…

Subscreva gratuitamente as newsletters e receba o melhor da actualidade e os trabalhos mais profundos.

QOSHE - “A banalidade do mau” - João Marques
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

“A banalidade do mau”

10 0
23.01.2024

Enfrentemos o elefante na sala. O Chega não é um partido, é uma intejeição que tem no seu nome a suprema limitação da sua ação… ou inação. Um movimento, um grupo, uma ideia que se sustenta na negativa, jamais poderá ter um contributo positivo para a comunidade a que se pretende destinar.
No seu símbolo oficial a palavra “Chega” aparece cobrindo o território de Portugal. A ideia é clara, a derivação freudiana também. Um conjunto de gente, farta de Portugal que só quer partilhar a sua frustração e elevá-la a manifesto político.
Na doença do regime, o Chega não é nem pretende ser a cura, mas antes o parasita que se alimenta da insuficiência do corpo democrático para o rechaçar. O Chega não vive na decência, mas no lugar mais lúgubre da indecência, o do aproveitamento da fragilidade, da inconsequência e da desesperança.
Na cura, o Chega não toma parte. As suas hipóteses de sobrevivência são inversamente proporcionais às da recuperação da democracia.
O que é, então, o Chega?
Um grupo de descontentes, inaptos e ineptos políticos que, sem ter onde se fixar no espectro partidário português, se prendem a um homem como a um messias, pior, como a um pai que deles cuidará enquanto for preciso. O pai tirano que sempre manda, cuja fotografia idolatram e........

© Correio do Minho


Get it on Google Play