O país entra agora numa fase estranha, de uma certa apatia natalícia que desdenha de tudo quanto sejam más notícias, crises, dissensos, debates e outros fenómenos políticos e para-políticos, pelo que o que escrevo pode ser indigesto e, até, corrosivo, mas não posso, ainda assim, deixar de o firmar em tinta permanente.
A próxima campanha eleitoral versará, entre muitos outros temas, sobre a regionalização, mas também sobre o processo de descentralização e a posição dos vários partidos no que toca ao futuro da gestão administrativa do território.
Será, pois, muito útil que o recente exemplo da supressão da linha de autocarro entre Braga e Porto, via A3, seja abordado, pelo menos ao nível dos debates entre os candidatos a deputados pelo círculo de Braga.
O que se passou nas últimas semanas foi uma mancha terrível sobre o poder local que só não teve piores resultados porque houve responsabilidade da parte dos autarcas que diretamente estão envolvidos na gestão dos concelhos afetados. E a isto voltarei neste texto.
Resumindo uma história longa, a Área Metropolitana do Porto (AMP) tinha a seu cargo, como teve durante muitos anos, a gestão da linha entre Braga e Porto, via A3.
A AMP atravessa um processo, seguramente muito exigente de assunção da gestão da rede de transporte de toda a área Metropolitana do Porto (com exceção do próprio concelho do Porto), a famosa UNIR.
Não cabe aqui, sequer, enumerar os múltiplos problemas que este processo tem dado à AMP e, sobretudo, aos utentes. Desde horários desconhecidos, a carreiras suprimidas sem aviso prévio, até mesmo a motoristas que não conhecem os trajetos, condenam a designação desta rede (UNIR) ao anedotário nacional e regional.
O que importa é reter que a AMP apenas informou a CIM do Cávado que iria suprimir a linha Braga-Porto, via A3, no dia anterior à produção de efeitos dessa decisão.
Importa também saber que esta linha, de acordo com a própria AMP, só poderia ser assumida pela CIM do Ave (ou mantida pela própria AMP).
E convém, ainda, ter presente que a CIM do Cávado não sabia nem podia ter sabido dos acordos existentes entre a própria AMP e a CIM do Ave, datados de 2019, e onde estas entidades contratualizaram a gestão da linha, uma vez que o mesmo não se encontrava publicitado, como deveria ter acontecido.
Finalmente, o início da UNIR, rede que serviu de cangalheiro transitório da linha Braga-Porto, foi várias vezes protelado, sendo impossível determinar a data exata em que o “funeral” ocorreria.
E a AMP poderia ter prorrogado, através de autorização provisória, a sobrevivência da linha nos mesmo termos em que era operada até 30 de novembro, optando por não o fazer.
Em suma, a AMP não foi nem proativa nem reativa perante uma situação que sabia e era a única a poder saber que iria redundar no prejuízo para utentes especialmente frágeis como os que acorrem aos serviços hospitalares de oncologia.
Para a história fica que a resolução de uma questão regional acabou resolvida pelo poder local municipal. Os presidentes das Câmaras Municipais do Porto e Braga entenderam-se rapidamente e restauraram a linha. Vigou o interesse público, perdeu a miopia do pequeno poder.
O que isto diz de um futuro processo de regionalização, ou dos benefícios que essa composição dos poderes administrativos territoriais possa trazer para o país é pouco, reconheço. Todavia, não devemos menosprezar as lições que nos oferece um processo tão simples e tão mal conduzido como este.
Como se viu, a AMP resguardou-se no silêncio de umas não respostas ou de formalismos pouco consentâneos com a urgência da ação material que as pessoas reclamavam.
No final, lançou mão do habitual jogo do passa-culpas para não ter de mostrar como um processo supostamente tendente a aumentar o poder e raio de ação de uma Área Metropolitana acabou por expor abertamente as suas fragilidades e incapacidades internas.
Não precisávamos de ter chegado a este ponto para concluirmos que, como costumo repetir sempre que falo na ânsia do processo regionalizador em curso (o PREC do século XXI): a forma não é conteúdo. E se é muito importante que o país não se concentre de modo disforme e inabilitante em redor de Lisboa e Porto, ou se pendure numa “litoralidade” que abandona dois terços do território do país à sua sorte, tal não pode ser visto apenas à luz de um modelo político. Até porque, como neste caso se demonstra, a existência de uma entidade como a AMP, corporizadora da descentralização de poderes que tão bem modela o espírito regionalizador, serviu de pouco para dar resposta aos anseios de quem mais dela precisava.
Se é para construir redomas de vidro, postuladas em lei, que apenas servem para manter um status quo de centralidadezinhas que não comunicam entre si, e se limitam a gerir a côdea de poder que lhes dão, como se de um império desligado do mundo se tratasse, então, deixemo-nos estar como estamos. Como reza a cantiga, “pra melhor, está bem, está bem, pra pior já basta assim”.

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“(des)Unir para reinar”

13 0
12.12.2023

O país entra agora numa fase estranha, de uma certa apatia natalícia que desdenha de tudo quanto sejam más notícias, crises, dissensos, debates e outros fenómenos políticos e para-políticos, pelo que o que escrevo pode ser indigesto e, até, corrosivo, mas não posso, ainda assim, deixar de o firmar em tinta permanente.
A próxima campanha eleitoral versará, entre muitos outros temas, sobre a regionalização, mas também sobre o processo de descentralização e a posição dos vários partidos no que toca ao futuro da gestão administrativa do território.
Será, pois, muito útil que o recente exemplo da supressão da linha de autocarro entre Braga e Porto, via A3, seja abordado, pelo menos ao nível dos debates entre os candidatos a deputados pelo círculo de Braga.
O que se passou nas últimas semanas foi uma mancha terrível sobre o poder local que só não teve piores resultados porque houve responsabilidade da parte dos autarcas que diretamente estão envolvidos na gestão dos concelhos afetados. E a isto voltarei neste texto.
Resumindo uma história longa, a Área Metropolitana do Porto (AMP) tinha a seu cargo, como teve durante muitos anos, a gestão da linha entre Braga e Porto, via A3.
A AMP atravessa um processo, seguramente muito exigente de assunção da gestão da rede de transporte de toda a área........

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