As mudanças políticas que ocorrem após as eleições são sempre marcadas por algumas alterações no funcionamento das estruturas da sociedade. Contudo, quando essas mudanças implicam alterações de regime, as transformações podem ser bem mais profundas, provocando algumas até grande agitação social.
Foi exactamente o que aconteceu em 1910, com a mudança da Monarquia para a República, com repercussões muito profundas no relacionamento entre o Estado e a Igreja. Num país predominantemente católico, contrariar estruturas enraizadas e seculares católicas resultou num dos grandes alvoroços sociais verificados no nosso país. As Juntas de Paróquia passaram a dominar o poder local de forma mais intensa sendo, na sua maioria, ocupadas por pessoas hostis aos párocos. Esta realidade era ainda mais grave pois na época a sociedade era marcada por jogos de influência, exercidas por caciques, normalmente homens, que na sua localidade impunham grande preponderância social e política.

As alterações foram tão profundas que incluíram, por exemplo, a obrigatoriedade de os párocos entregarem as caixas de esmolas às Juntas de Paróquia! Basta recordar também o capítulo VII da Lei da separação do Estado das igrejas, no seu artigo 156º, que refere que se consideram extintas todas as prestações em dinheiro ou em géneros que os paroquianos “por uso e costume” ofereciam ao seu pároco!
Os novos ideais anticatólicos que começaram a sentir-se logo nas semanas seguintes à implantação da República provocaram uma enorme tensão entre o poder civil e o religioso, sendo então um dos casos mais mediáticos o que ocorreu com o pároco de Arentim (Braga), em dezembro de 1910.
O número de padres na época era bem diferente do da atualidade. Enquanto que hoje há poucos párocos e muitos lugares disponíveis, na altura a realidade era oposta. Por exemplo, seis anos antes, em maio de 1904, concorreram a pároco de Santa Cecília de Vilaça 13 presbíteros: João Baptista Fernandes, Domingos de Jesus Araújo, Júlio José da Silva Matos, Manuel Pires Lages (a personagem hoje abordada aqui e que posteriormente foi colocado em Arentim), Manuel Rodrigues, Domingos José Amorim, António de 0liveira Novaes, Joaquim Gomes de Araújo Miranda, António Vilela da Mota, João António Vieira Andrade, José Coelho dos Santos, José Pereira Oliveira Barbosa e Miguel José Oliveira!
Manuel Pires Lage, que a 26 de junho de 1900 tinha sido nomeado para a paróquia de Arcos de Baúlhe, em Cabeceiras de Basto, era uma figura muito ativa na sua localidade e na região.
Este padre, já abordado aqui noutro texto, gostava de dar a sua opinião social e política, não se preocupando com as consequências que daí poderiam advir. Era, inclusive, muito interventivo na imprensa da época, onde tinha uma crónica considerada por muitos um escândalo, sendo conhecido ainda como “o terror da freguesia”.
Ora, no domingo, dia 11 de dezembro de 1910, ocorreu um enorme escândalo em Arentim, que teve uma enorme repercussão no centro da cidade de Braga. Segundo o “Commercio do Minho”, de 13 de dezembro de 1910, tudo se desencadeou quando o pároco de Arentim agrediu o professor da mesma freguesia.

Perante a enorme agitação provocada entre as duas principais figuras da freguesia, o referido padre acabou, na segunda-feira, dia 12 de dezembro, por ser “prezo pelo regedor e cabos de policia da freguezia, e conduzido em carro descoberto a esta cidade, acompanhado por aquelles individuos e outros, armados de espingardas”.
Quando, pelo meio dia desse dia 12 de dezembro, Manuel Pires Lage chegou a Braga, “foi levado à administração do concelho, sempre acompanhado da escolta popular armada, juntando-se defronte da administração muito povo de Arentim e d’esta cidade, fazendo vários comentários”.
Quando de seguida o pároco foi interrogado pelo administrador do concelho de Braga, as expectativas e as emoções dos populares que se encontravam nas redondezas atingiram o auge! “Durante esta diligencia, que demorou até depois das 2 da tarde, estacionou muita gente defronte da administração, achando-se também alli alguns guardas-civis, para manter a ordem”. Também as cerca de três centenas de populares de Arentim, que se encontravam no local, fizeram uma guarda ao edifício, munidos de “espingardas, algumas das quaes muito primitivas”. Então, o “caso açulou a curiosidade, fervendo commentarios picantes” entre os populares.
A maior parte dos populares estava contra o comportamento, a arrogância e o autoritarismo do padre de Arentim, atribuindo ainda todo “aquelle apparato bellico do tempo da Maria da Fonte”, a vinganças de indivíduos de Arentim que estavam contra o pároco Manuel Pires Lage.

Após as audições levadas a cabo pelo administrador do concelho, o padre foi levado para a esquadra da polícia, onde ficou detido. De seguida, as cerca de três centenas de populares de Arentim, que circulavam por Braga, aos quais se juntaram outros populares de outras freguesias, dirigiram-se ao Paço Arquiepiscopal onde foram pedir ao Arcebispo de Braga que impedisse o reverendo Manuel Pires Lage de voltar a paroquiar em Arentim!

O sacerdote ficou preso na esquadra da polícia até terça-feira, dia 13 de dezembro, dia em que foi restituído à liberdade, para ser de seguida julgado em tribunal judicial. Apesar deste episódio, Manuel Pires Lage não se intimidou, mantendo-se como pároco de Arentim. A 21 de setembro de 1911, “A Comissão Central de Execução da Lei da Separação” atribui ao padre Manuel Pires Lage a pensão de 16$665 reis mensais.
Este manteve-se nesta freguesia durante mais de uma década, sendo permanentes os casos de instabilidade e de agitação provocados pelo padre. Em 1920, por exemplo, continuava em Arentim, e não faltasse quem o rotulasse de “desordeiro”, “bêbado”, “monstro” ou “canalha”.
A reação dos populares da freguesia de Arentim contra o padre Manuel Pires Lage, em dezembro de 1910, constituiu uma das maiores revoltas desencadeadas por populares de uma freguesia rural no centro da cidade, fazendo lembrar a célebre revolta da “Maria da Fonte”, ocorrida na Póvoa de Lanhoso entre abril e maio de 1846.

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“A revolta da Maria da Fonte que...”

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14.04.2024

As mudanças políticas que ocorrem após as eleições são sempre marcadas por algumas alterações no funcionamento das estruturas da sociedade. Contudo, quando essas mudanças implicam alterações de regime, as transformações podem ser bem mais profundas, provocando algumas até grande agitação social.
Foi exactamente o que aconteceu em 1910, com a mudança da Monarquia para a República, com repercussões muito profundas no relacionamento entre o Estado e a Igreja. Num país predominantemente católico, contrariar estruturas enraizadas e seculares católicas resultou num dos grandes alvoroços sociais verificados no nosso país. As Juntas de Paróquia passaram a dominar o poder local de forma mais intensa sendo, na sua maioria, ocupadas por pessoas hostis aos párocos. Esta realidade era ainda mais grave pois na época a sociedade era marcada por jogos de influência, exercidas por caciques, normalmente homens, que na sua localidade impunham grande preponderância social e política.

As alterações foram tão profundas que incluíram, por exemplo, a obrigatoriedade de os párocos entregarem as caixas de esmolas às Juntas de Paróquia! Basta recordar também o capítulo VII da Lei da separação do Estado das igrejas, no seu artigo 156º, que refere que se consideram extintas todas as prestações em dinheiro ou em géneros que os paroquianos “por uso e costume” ofereciam ao seu pároco!
Os novos ideais anticatólicos que começaram a sentir-se logo nas semanas seguintes à implantação da República provocaram uma enorme tensão entre o poder civil e o religioso, sendo então um dos casos mais mediáticos o........

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