O nosso país está repleto de tradições, muitas com raízes seculares, mas algumas foram-se perdendo e permanecem apenas na memória das pessoas. Uma dessas tradições prende-se com a “Serração da velha”, uma tradição que teve muito impacto em Braga, durante vários séculos, e que praticamente desapareceu nos inícios do século XX.
A tradição da “Serração da velha” realizava-se no meio da Quaresma, exatamente 20 dias após o Carnaval. Teófilo Braga (“A tradição”) refere que este cerimonial popular significa o “expulsar do inverno ou a morte, a vinda da primavera, da luz, da alegria, que desenvolve a vegetação e traz a fecundidade”. A “Velha” tratava-se de uma figura alegórica associada ao inverno.

Esta tradição era praticada em Portugal, mas também em Itália, Espanha, França, Suíça (onde era conhecida como serragem da Bagorda) e Rússia (conhecida por cerimónia fúnebre de Kostrubonko).
Teófilo Braga escreveu em “A tradição”, que “…essa salsada ou charivari de chocalhos, buzinas e campainhas com que percorre as ruas, era um acto do culto primitivo do politeísmo indo-europeu”. E referindo-se à velha diz “…hoje é uma entidade vaga, sem sentido, que o povo vae serrar, isto é, que vae passar a serra, como quem repele para longe as brumas e as nuvens do inverno”.
Ultrapassada essa referência mítica “o povo modificou o sentido e do vestígio da ideia de partir ao meio o ano solar; inventou a prática alegórica de partir ao meio, com a serra, a Velha, metida dentro de um cortiço”.
Também Alberto Pimentel, no livro “Atravez do passado” (1888) faz referência a esta tradição, referindo que “O costume da Serração da Velha parece conservar a tradição mítica da expulsão do inverno pela sua personificação numa velha, como se pode verificar em Gil Vicente (Triunfo do Inverno)”.

Alberto Pimentel diz que conhece “Braga como as minhas mãos”, referindo-se a “uma cidade pouco menos de prehistorica, repleta de morgados, de padres, do beatas e de miguelistas”.
Nesta Braga de meados do século XIX pouco se passava. “O Bracarense”, de 16 de março de 1860, refere que “Por hoje pouco mais terei que contar, a não ser a comedia em um acto intitulada a Serração da Velha que tivemos quarta feira passada á meia noite no meio do campo de sancta Anna. Foi grande a enchente...”.
Durante séculos, as pessoas juntavam-se ao final da noite, dirigiam-se para um local anunciado mesmo em cima do acontecimento, onde se encontrava uma serra e um cortiço, este último com uma velha, humana ou fictícia, no seu interior. De seguida a velha apresentava um testamento, seguido de algumas palavras, ouvindo-se posteriormente os gritos de "Serra a velha, serra a velha"!

Alberto Pimentel refere, na obra mencionada, que “Um sujeito que tivesse veia cómica era escolhido para fazer o papel de velha; nomeava seus testamentários e mencionava os seus legados; recebia doces e vinho e mettia-se ou era mettido por fim n'um cylindro de cortiça que era serrado no meio dos gritos dolorosos da velha e da gargalhada dos circunstantes; a velha evadia-se antes da serra lhe tocar e o cortiço era queimado”.
Em Braga a “Serração da Velha” foi, com a chegada do século XX, perdendo importância. Mas nas décadas anteriores movimentava multidões. Em 1885 “O Commercio do Minho” (14 de março de 1885) refere que “Foi uma noite de tormentos para as velhotas, a de quarta feira. Vários grupos de rapazes percorriam as ruas da cidade, gazarra terrível, lembrando idosas o seu fim próximo”.
O grupo de rapazes era seguido “por uma enorme guarda avançada de rapazio, que atordoava meio mundo e divertia outro meio com os seus gritos de morra a velha!”. Em muitas ocasiões a algazarra era de tal forma intensa que a própria polícia tinha que impor a ordem. No entanto, nesse ano de 1885 “a policia não teve que fazer n’essa noite, o que é um verdadeiro caso raro”.

No ano seguinte a tradição voltou a desenvolver-se em Braga. A mesma fonte, de 3 de abril de 1886, refere que “A lendaria, e mythologica velha dos nossos antepassados foi este anno novamente morta. Morta, é um modo de dizer, porque ella nao morre: inverna apenas, com os percevejos e as moscas”.
No entanto, quando chega a Primavera, a velha cobre-se de “umas vestes gaiteiras, e vem para a rua apparentar de moça... Mas os rapazes cercam-na e gritam “Vamos a velha! vinde a velha!”. E a velha grita e tenta fugir, mas os rapazes mais velozes perseguem-na, fazem-lhe caretas e gritam “Vaes morrer, vamos serrar-te faz o teu testamento”. A velha reage e grita “Nao quero morrer, sou boa mulher, vou-me casar…”, respondendo os rapazes: -Quem é que te ha de querer, minha velha do cartucho?”!
No meio deste grande alarido a velha, ameaçada pelos rapazes, começa a fazer o seu testamento referindo que deixa “dous dentes que lhe restam, já furados, ao maior desdentado; quatro repas que ainda tem na cabeça, a qualquer careca; a caixa do rape, feita de solida madeira do ar, a qualquer tomador de pitadas; o lenço de cinco pontas, ao mesmo; as canellas ossudas, aos faqueiros de Guimaraes, etc”.

Depois deste testamento, “a velha mette-se dentro do cortico e o rapasio começa serra que serra, serra que serra, no meio d’uma algasarra enorme”.
De seguida é referido o ofício e cada um “berra quanto pode, e a velha e condusida, envolta n’um lencol, em padiola, por essas ruas fora, entre archotes, serrotes, latas velhas, uma berraria infernal, e assobios de espantar um morto”.
Era assim a tradição de “Serração da velha” embora já na altura reconhecessem a diminuição do entusiasmo desta tradição popular: “Ha poucos annos ainda, estas pandegas eram feitas com grandissimo enthusiasmo. Agora, o costume esta a passar a historia. N’esta cidade, este anno, passou quasi desapercebida a serracao da velha”!
Em 1888 a tradição da “Serração da velha” foi perdendo importância em Braga. O “Commercio do Minho”, de 10 de março de 1888, refere que a tradição da “Serração da velha” passou quase despercebido “a folia, com pretexto da serracao da velha”. Apenas no “campo de Santanna appareceram, cerca das 9 horas da noite, alguns rapazes empunhando fachos de colmo, e archotes, e fazendo alegre comitiva a uma velha que era condusida sobre uma padiola, para sofrer o supplicio da serração”. Houve de seguida “Grande algazarra e barulho de campainhas, e por fim a velha foi suppliciada aos gritos de: -Serra a velha, serra a velha, do cortiço para a panella”.

Apesar, porem, da pouca animacao, houve velhotas que apanharam a sua conta de medo, lembrando se de que seriam serradas n’aquella noite”!
A tradição de serrar a velha chegou a provocar momentos de grande tensão em várias famílias, onde as pessoas idosas se faziam notar. Por exemplo, a 13 de março de 1893 faleceu no Hospital da Misericórdia João Francisco Correia, residente em Oliveira do Douro, que fora ferido por um tiro de revolver disparado sobre um grupo de rapazes por Teresa Pinto de Jesus, quando os mesmos rapazes faziam balbúrdia junto à porta de sua mãe, septuagenária, na noite da “Serração da velha”. Teresa Pinto acabou capturada pela polícia.
Hoje as pessoas idosas já não necessitam de ter receio de serem serradas, embora não faltem receios e angústias que lhe provocam medo: refiro-me ao abandono por parte de familiares e amigos.

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“Quando em Braga a velha era serrada”

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04.02.2024

O nosso país está repleto de tradições, muitas com raízes seculares, mas algumas foram-se perdendo e permanecem apenas na memória das pessoas. Uma dessas tradições prende-se com a “Serração da velha”, uma tradição que teve muito impacto em Braga, durante vários séculos, e que praticamente desapareceu nos inícios do século XX.
A tradição da “Serração da velha” realizava-se no meio da Quaresma, exatamente 20 dias após o Carnaval. Teófilo Braga (“A tradição”) refere que este cerimonial popular significa o “expulsar do inverno ou a morte, a vinda da primavera, da luz, da alegria, que desenvolve a vegetação e traz a fecundidade”. A “Velha” tratava-se de uma figura alegórica associada ao inverno.

Esta tradição era praticada em Portugal, mas também em Itália, Espanha, França, Suíça (onde era conhecida como serragem da Bagorda) e Rússia (conhecida por cerimónia fúnebre de Kostrubonko).
Teófilo Braga escreveu em “A tradição”, que “…essa salsada ou charivari de chocalhos, buzinas e campainhas com que percorre as ruas, era um acto do culto primitivo do politeísmo indo-europeu”. E referindo-se à velha diz “…hoje é uma entidade vaga, sem sentido, que o povo vae serrar, isto é, que vae passar a serra, como quem repele para longe as brumas e as nuvens do inverno”.
Ultrapassada essa referência mítica “o povo modificou o sentido e do vestígio da ideia de partir ao meio o ano solar; inventou a prática alegórica de partir ao meio, com a serra, a Velha, metida dentro de um cortiço”.
Também Alberto Pimentel, no livro “Atravez do passado” (1888) faz referência a esta tradição, referindo que “O costume da Serração da Velha parece conservar a tradição mítica da expulsão do inverno pela sua personificação numa velha, como se pode verificar em Gil Vicente (Triunfo do Inverno)”.

Alberto Pimentel diz que conhece “Braga como as minhas........

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