Navalny seria uma sombra, doravante será uma assombração. Navalny entregou-se ao martírio e, só não será santo, porque uma igreja local esteja de pedra e cal com o poder, como, aliás, seja o caso dos tribunais. Subserviências que entre nós são ecos surdos de vários passados, embora não tenhamos muito que rir, ou não nos indignem estações de três semanas em calabouço de polícia criminal à disposição das preguiças de um juiz.
Linha recta sacrílega entre uma prisão nos limites do círculo boreal e um cubículo de canário em exposição para teste de pluma e canto. Ave rara que Navalny não fosse, passarões sem diploma que o sejam os encafuados de cá, ou pelo menos assim nós os queiramos perceber, pelas nossas invejas, ou impotências, porque Portugal seja opaco e a generalidade de nós translúcidos, porque todos queiramos uma maquia de meio milhão em notas, ou um diamantezeco enrolado em papel-celofane, para não riscar o folheado de teca do contador.

Três semanas de mecha para nenhum estouro. Pisteiros às dezenas transvazados de avião, que pena foi não terem descido de paraquedas para épico de ecrã candidato à estatueta. Quatro dias que tanta vez fica quem está em juízo de instrução. Logo por três haveria que multiplicar o banal. E depois o lastro dos despojos de guerra: 200, 270, 300 – número incerto de investigadores e peritos. Ora a cada um seu papelinho em desdobrado, porque a cada achado seu relatório, que fazer poderia o meritíssimo? E já não ter sucumbido à avalanche foi um alívio, ou ainda estaria o trio sob custódia de instâncias, à espera de sucessor.
Componho drama com ironia, não para relativizar o desfecho infausto de Navalny, nem para achincalhar o terceto insular ou o despachante judiciário da capital, mas para significar que as derivas de qualquer Poder têm como óleo de engrenagem o laxismo e a passividade do corpo amorfo dos conduzidos. Com que desprezo o PS de Costa e os media não se debruçaram sobre o repente de Rui Rio? Não era ele um cavernícola de direita, por querer tocar no Min. Público?

Espraio-me às três tabelas. Reporto-me agora a França. O Conselho Constitucional, que ao contrário de Portugal não é composto exclusivamente por juízes, determinou à Autoridade para a Comunicação Social que seguisse de perto a estação televisiva CNEWS, etiquetando pivots, editorialistas, painéis e convidados. Em causa esteve uma queixa da ONG Repórteres Sem Fronteiras. Algumas curiosidades: os RsF já se haviam queixado à ACS, que havia estabelecido o pluralismo da antena. Insatisfeitos, os RsF levaram a causa ao CC, que por ser mais esquerdista ainda, saiu dos eixos e decretou um absurdo irrealizável, cobrindo-se de ridículo. Ora, o grave, é que a medida abranja um único órgão, logo o mais pluralista, em tudo o que vejo, mas deplorado entre os herdeiros de 68, porque desmascare o que a esquerda anoréxica queira manter oculto.

Não tenho macete, blefe ou batota para abancar em mesa de dementocratas. O próprio jogo me é contrário. Simplicidades que talvez leve ao extremo. Mas, tanto tendo sido glosado o envenenamento frustrado de Navalny, eu nunca deixei de me surpreender com a inépcia do monstro, que ou é poderoso e varre de vez, ou é um papão de ficção, daqueles que já não usamos para que a criança coma a sopa. O que não invalida que cá, no Ocidente, não passasse pela cabeça de ninguém trancá-lo até à morte pelo que dissesse de justo ou absurdo sobre a condução do Estado.
Querendo, em toda a parte vemos atropelados na passadeira e não é estranho que nos fixemos em faixa alheia, inundando o espírito de justa indignação. Assim passamos virginais ao lado do que nos respeita.

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“Demontocracia”

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18.02.2024

Navalny seria uma sombra, doravante será uma assombração. Navalny entregou-se ao martírio e, só não será santo, porque uma igreja local esteja de pedra e cal com o poder, como, aliás, seja o caso dos tribunais. Subserviências que entre nós são ecos surdos de vários passados, embora não tenhamos muito que rir, ou não nos indignem estações de três semanas em calabouço de polícia criminal à disposição das preguiças de um juiz.
Linha recta sacrílega entre uma prisão nos limites do círculo boreal e um cubículo de canário em exposição para teste de pluma e canto. Ave rara que Navalny não fosse, passarões sem diploma que o sejam os encafuados de cá, ou pelo menos assim nós os queiramos perceber, pelas nossas invejas, ou impotências, porque Portugal seja opaco e a generalidade de nós translúcidos, porque todos queiramos uma maquia de meio milhão em notas, ou um diamantezeco enrolado em papel-celofane, para não riscar o folheado de teca do contador.

Três semanas........

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