As crianças perderam autonomia e independência na última geração. Muitos de nós há 20 e 30 anos atrás, íamos a pé, de bicicleta ou de transporte público para a escola. Íamos brincar para o espaço público à porta de casa, de bicicleta até aos montes ou para fazer recados. Com isso ganhamos responsabilidade, autonomia e independência. Nós que tivemos liberdade e experiência, somos os primeiros a sacrificar esse direito aos nossos filhos. A querer fazer as coisas por eles, a não os deixarmos ser livres, autónomos e responsáveis. Tornamo-nos pais e mães “galinhas” porquê?
Acredito que a resposta está no desenho das cidades que hoje temos, desenho esse que não é convidativo, nem seguro, para permitirmos que as nossas crianças usufruam deles.
As praças desapareceram e muitas têm carros estacionados em cima delas. Os passeios estão esburacados, em muitos casos porque os carros lá estacionam em cima. O passeio normalmente não é feito para aguentar com o peso do carro. As passadeiras têm carros estacionados, alguns para a seguir levar a criança mesmo ao portão da escola. As pessoas que vão a conduzir os carros raramente abrandam e não param para deixar atravessar as pessoas nas passadeiras.
As velocidades efetivamente praticadas pelos carros nas nossas ruas e avenidas não são as adequadas para garantir que uma pessoa adulta que vá de bicicleta em deslocação diária, a uns 20 km/h, o faça de forma segura. Uma criança pedala à volta dos 10 km/h. Concordamos que é necessária coragem e bravura para algumas alterações de fundo, necessárias, na infraestrutura existente, mas não se compreende como os Municípios nada fazem por cumprir as velocidades máximas nas cidades.
Com isto tudo temos um clima de medo instaurado nas nossas cidades. E esse clima de medo retirou as crianças do espaço público, retirou-lhes a autonomia, a liberdade, a independência. Quantos de nós acompanhamos uma criança a pé, de bicicleta ou de transporte público para a escola? E se ela passasse a querer ir sozinho num desses modos, ganhando autonomia, autoconfiança, liberdade. Deixávamos? Não? Porquê? Que adulto vamos ter ao não deixar, ao não promover essa autonomia?
Não deixamos porque a cidade não está preparada para isso. É esta a realidade. Porque a cidade convida a andar de carro.
Tenho ouvido e lido o Município de Braga a apontar o dedo às pessoas e a dizer que a culpa de não termos mais pessoas a andar a pé, de bicicleta ou de transporte público é das pessoas, que não utilizam esses modos. Acrescenta que só criará mais condições para esses modos se mais gente utilizar esses modos de transporte.
Gostava de saber de quem são as crianças que o Município quer sacrificar para só depois poder passar a criar condições nas Avenidas Imaculada Conceição, João XXI, João Paulo II, Frei Bartolomeu dos Mártires ou Júlio Fragata. Quais são as vidas que podiam ter sido salvas e não são, por inação na reorganização das vias, por não serem introduzidas as medidas de acalmia de tráfego, por demorarem 10 anos a substituírem passagens aéreas ilegais por passadeiras semaforizadas ou a fazer-se cumprir efetivamente o limite de 50 km/h nestas avenidas. Serão os filhos de quem?
O Município tenta-se escusar do dever de cuidado e ignora quer a revisão da literatura quer a realidade que outras cidades viveram na promoção dos modos de transporte sustentáveis: primeiro criam-se as condições, e depois mais pessoas aparecem a usar.
Perante esta realidade de super motorização e super utilização do carro, os dados de sinistralidade são desastrosos. Em Portugal é atropelada, em média, 1 pessoa a cada 3 horas. Em Braga é atropelada 1 pessoa a cada 3 dias! Não são “acidentes”, são desastres! É catastrófico!
Todas as crianças têm o direito de viver de uma forma segura e saudável. Além disso, todas as crianças têm o direito à educação. Estes direitos podem-se traduzir numa visão política para a mobilidade: todas as crianças devem ter o direito a ir para a escola de uma forma independente, saudável, segura e ativa. E colocando as coisas nestes termos, há quem esteja a impedir as crianças de terem os seus direitos fundamentais.
Eu não estou disponível para sacrificar nem a vida da minha filha, nem o direito dela a utilizar um modo de transporte que lhe dá independência e autonomia.
A mobilidade induz-se.

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“As crianças que o Município...”

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24.03.2024

As crianças perderam autonomia e independência na última geração. Muitos de nós há 20 e 30 anos atrás, íamos a pé, de bicicleta ou de transporte público para a escola. Íamos brincar para o espaço público à porta de casa, de bicicleta até aos montes ou para fazer recados. Com isso ganhamos responsabilidade, autonomia e independência. Nós que tivemos liberdade e experiência, somos os primeiros a sacrificar esse direito aos nossos filhos. A querer fazer as coisas por eles, a não os deixarmos ser livres, autónomos e responsáveis. Tornamo-nos pais e mães “galinhas” porquê?
Acredito que a resposta está no desenho das cidades que hoje temos, desenho esse que não é convidativo, nem seguro, para permitirmos que as nossas crianças usufruam deles.
As praças desapareceram e muitas têm carros estacionados em cima delas. Os passeios estão esburacados, em muitos casos porque os carros lá estacionam em cima. O passeio normalmente não é feito para aguentar com o peso do carro. As passadeiras têm carros estacionados, alguns para a seguir levar a criança mesmo ao portão da escola. As pessoas que vão a conduzir os carros raramente abrandam e não........

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