«Homem livre, tu sempre gostarás do mar»
Charles Baudelaire

Tenho nas mãos o Outono dos dias maiores. Há nelas o cheiro do fim de tarde. Aquele que pede desalmadamente o abraço que desarma o desassossego. Escrevo com a noite nos olhos. Vejo a infância soletrada em marcos. Mora a França em mim. Rasgo-me pela Lisboa antiga, deixo cair o olhar pelo Barroso do soco e da galocha, reinvento- me por uma Braga que já não existe e pouso a vertigem no chão que hoje me acolhe. Um fio de ponte com o nome Ricardo.
Diante de mim observo a estrada dos 50. Surgiu em pelugem este mês. Dias de voo interior. Uma solidão egoísta obtida à custa de uma vida, quase sempre, com o retrovisor no outro. Caminho com o mar ao longe. No ouvido, resisto ao estalar das ondas pelo tanto que dei e recebi. Vejo a areia. As pegadas. O silêncio que se espanta por entre os dedos. Tudo vaza em coro. É por aqui que miro a película desta imensa estação.
Invoco os primeiros passos na Rua das Necessidades. Não esqueço o elétrico que marchava por entre a calçada. Já antes tinha pisado um chão que só mais tarde amei. Pelo meio, a viagem de mão dada com uma mulher que não lembro e não esqueço. Foi pelas mãos dela que recordo o primeiro abraço aos meus pais no país que me viu nascer. Aconteceu na então pujante TAP que resisto a sarapantar quando a conversa de café aponta para a escolha entre o público e o privado. Há por aqui tanto que não tenho abrigo a não ser pelo silêncio.

Sigo como segue o fazedor de Jorge Luis Borges quando garante que é «um homem de letras, nada mais». Por entre elas, há um rádio a pilhas que ansiava pelo domingo dos relatos das três da tarde. Ali, por entre vacas e cães, aqui e acolá um zurrar de burro, entrava em campo à rédea solta. O meu pé esquerdo foi sempre o Futre que driblava os desamores do ninho. Sentia que existia em mim um verão invencível em pleno inverno, como descreve Camus.
Quando Braga me abraçou tinha a pele tricotada pelo Larouco. Um ano carimbado pela perda e pelo eterno. Levei comigo a vezeira, as leiras, as badolas, os serões e as noites de luar. Foram estas, afinal, que conseguiram guardar o deslumbre. Ainda hoje tenho o forno do povo nas mãos. As segadas, a sacha das batatas e a torna do lameiro. As casas pintadas de fumo. A bilhó da castanha. As matanças e o arranque das batatas. O aricar da terra. O escanar do milho. A cabra que abortou. A outra que trouxe dois ou três cabritos. O cão Lorde e o Ringo. Tanto que não cabe aqui.

D. Maria II. Foi nesta reverência que entrou o menino com sotaque. Calado e observador. Ouvi muito. Falei pouco. Mantenho aqueles que nunca apontaram o insustentável olhar. Poucos. Fragata e Miguel. Bastaram porque tiveram força e arte para não embarcarem na irresistível tentação do circo. Os outros são o tempo curto que falece sem combate. Resisti por entre choro e por algo que ainda hoje não explico. Uma força que derruba o insistente não gladiar. Foi nela que cheguei ao estado maior da educação. Nesse fim de tarde, vi o que nunca vi no meu pai. Um grito de força interior que pedia os meus passos. Foram cinco anos de liberdade sem espelho.
Mais tarde, esta casa foi o templo dos entendidos. Tive a ferocidade do silêncio e o vigor do dever feito. Fui protagonista sem o razoar. Saí com a porta por bater.
Hoje durmo na terra que escolhi há mais de 25 anos. Um lugar prenho de vida. Parido pela saudade do passado. Crente que o hoje pode ser belo em dias de cólera. É neste trapézio que levito e aterro. Invoco os incondicionais que fazem de mim um ser que gosta quando o Sol está a dizer adeus. Olho para a palma da mão e sigo em frente.

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QOSHE - “50” - Ricardo Moura
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“50”

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29.03.2024

«Homem livre, tu sempre gostarás do mar»
Charles Baudelaire

Tenho nas mãos o Outono dos dias maiores. Há nelas o cheiro do fim de tarde. Aquele que pede desalmadamente o abraço que desarma o desassossego. Escrevo com a noite nos olhos. Vejo a infância soletrada em marcos. Mora a França em mim. Rasgo-me pela Lisboa antiga, deixo cair o olhar pelo Barroso do soco e da galocha, reinvento- me por uma Braga que já não existe e pouso a vertigem no chão que hoje me acolhe. Um fio de ponte com o nome Ricardo.
Diante de mim observo a estrada dos 50. Surgiu em pelugem este mês. Dias de voo interior. Uma solidão egoísta obtida à custa de uma vida, quase sempre, com o retrovisor no outro. Caminho com o mar ao longe. No ouvido, resisto ao estalar das ondas pelo tanto que dei e recebi. Vejo a areia. As pegadas. O silêncio que se espanta por entre os dedos. Tudo vaza em coro. É por aqui que miro a película desta imensa estação.
Invoco os primeiros passos na Rua das........

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