( 1 ) O flautista
Sopra levemente e atrai os que o seguem sem voz. O encantador de cães lava já dezenas atrás de si e em breve serão milhares. Sem dúvidas, abanando as caudas felizes seguem as músicas constantes. Um ou outro perde-se aquando dos silêncios de repouso do flautista. Dois ou três guerreiam na ausência do som, como se ficassem perdidos, sem rumo. Seguem a flauta mágica agregando mais cães. Vão a descer do Minho pela estrada N2 e por vezes com eles vai um dono ou um amigo do cão. Não se agregaram gatos, porque são sábios, e reconhecem o perigo dos momentos em que a flaute se cala. Uma caminhada de dias em que a flauta encanta e espalha a ternura de um som doce. Como são muitos já assustam à passagem das aldeias, já se veem polícias que os ladeiam, já apareceu um carro de televisão, já tentaram entrevistar o flautista e foram mordidos pela matilha. O caminho é para Sagres. Jorge é o homem da flauta e nasceu em Armamar. De facto ele “Amaomar” e adora as músicas tântricas que reproduz e as que vai criando. Caminha calmamente e sabe que demorará três semanas a chegar a Sagres.

( 2 ) Sagres
A matilha aproxima-se de Sagres.
São agora milhares de cães que percorreram Portugal. Há os vadios que se juntaram, os pipis que se libertaram das roupas e das coleiras. Há ainda os cães que fugiram de calabouços. Há histórias de lutas ferozes com os cativeiros de cães. Soltaram-se os que estavam nos acampamentos de ciganos. Invadiram e libertaram os que viviam nos canis. Todos crentes da fantasia que exala do perfume da flauta. Um som é uma fragrância que nos inebria e nos “cinematiza” a vida. Houve momentos hilariantes ao construir colchões de corpos para onde saltavam das varandas os infelizes que lá viviam. Nunca se juntaram os cães livres e amados. Esses colocavam perguntas. Onde ides? Porque ides? Com quem vão? Porque ouvis essa música? São teimosos os renitentes. Eram poucos mas não iam. Os cães da Né não foram. O cão do Paulo não saltou do varandão. Os cães da Mónica riram-se dos que passavam. Chegados à falésia de Sagres, o flautista não parou, e caindo tocava. As músicas sucediam-se cada vez mais lindas. A matilha sem dúvidas seguiu-o, foi mergulhando feliz e acabando no mar. Jorge odiava os cães e assim matou milhares.

QOSHE - Conto em dois capítulos - Diogo Cabrita
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Conto em dois capítulos

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25.11.2023

( 1 ) O flautista
Sopra levemente e atrai os que o seguem sem voz. O encantador de cães lava já dezenas atrás de si e em breve serão milhares. Sem dúvidas, abanando as caudas felizes seguem as músicas constantes. Um ou outro perde-se aquando dos silêncios de repouso do flautista. Dois ou três guerreiam na ausência do som, como se ficassem perdidos, sem rumo. Seguem a flauta mágica agregando mais cães. Vão a descer do Minho pela estrada N2 e por vezes com eles vai um dono ou um amigo do cão. Não se agregaram gatos, porque são sábios, e........

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