Durante o período do Estado Novo existia uma politica de Saúde alavancada nos valores ideológicos estabelecidos na constituição de 1933 na qual cabia ao Estado cuidar apenas dos pobres. Neste “Serviço Caritário de Saúde”, apenas os pobres e indigentes tinham direito a assistência gratuita mediante atestado passado pelas autoridades. A classe média pagava parte dos cuidados de saúde que recebia, e a classe mais alta ou os ricos recorriam a cuidados de saúde privados prestados em Casas de Saúde Privadas e em quartos particulares em Hospitais públicos. As instituições de saúde existentes à época eram as Misericórdias, que geriam um número importante de instituições hospitalares; os Hospitais Estatais Especializados localizados apenas nos grandes centros urbanos, os Serviços Médico Sociais que prestavam assistência médica aos benificiários da Caixa de Previdencia, e os Serviços de Saúde Publica mais vocacionados para os cuidados materno infantis e vacinação.
Os cuidados de saúde eram alías neste período, sobretudo curativos, com pouco investimento efectuado no domínio da prevenção, com excepção da prevenção de infecções e epidemias. Existia uma assimetria grande entre o litoral e o interior na qualidade e acesso aos cuidados de saúde, com uma percentagem muito alta da população sem acesso aos cuidados de saúde pelo seu afastamento geográfico.
Ainda durante a Ditadura, nos anos 70, é aprovado o novo Estatuto da Saúde e Assistência no qual cabia ao Estado criar serviços de saúde e assistência que fossem considerados indispensáveis. É aliás em 1971 que a Ordem dos Médicos através de Miller Guerra e Mário Mendes publica o Relatorio das Carreiras Médicas que mais não seria do que as bases ideológicas para a criação e organização de um serviço de saúde universal. Foi neste período que foram criadas duas das Estruturas Funcionais mais importantes que ainda hoje persistem: Os Centros de Saúde e os Hospitais.
A partir de 1974, com o fim do Estado Novo, Portugal passou a ter um Serviço Nacional de Saúde Geral, Universal e Gratuito, apesar de apenas em 1979, esse Serviço ter visto a sua consagração jurídica.
Foram anos de uma melhoria gigantesca nos cuidados de saúde, bem expressa na evolução positiva de indicadores de saúde como mortalidade infantil ou a esperança de vida.
Mas foi sobretudo uma mudança na democratização da saúde: todos passaram a ter acesso a cuidados de saúde independentemente do seu estatuto social ou económico. Verificou-se ainda, sob ponto de vista geográfico, um aumento exponencial na população coberta por cuidados de saúde, contribuindo para a coesão territorial.
Perante a ausência de técnicos especializados na área de gestão em saúde, a gestão dos hospitais e dos centros de saúde foi neste período entregue a Direcções lideradas por Médicos contribuindo para uma adequada orientação dos cuidados de acordo com as necessidades das populações. A partir dos anos 90 assistiu-se a uma deterioração progressiva do SNS, com aumento progressivo das dificuldades de acesso a cuidados de saúde. As listas de espera para consulta e cirurgia hospitalar foram crescendo, as filas de espera de consulta às portas dos centros de saúde aumentavam de ano para ano. Quando os diversos governos afirmavam que orçamento para a saúde aumentava todos os anos, na verdade sentia-se que a construção de novos hospitais e o investimento em novos equipamentos, era cada vez mais baixo. O clima de desmotivação nos profissionais de saúde era crescente fruto da degradação das carreiras, da falta de atualização salarial, e do agravamento das condições de trabalho. As Administrações Hospitalares passaram a ser organizações lideradas por Administradores Hospitalares de nomeação politica, com uma visão economicista, onde o peso decisório dos profissionais de saúde era cada vez menor, com repercussões significativas na diminuição da qualidade e na perda da humanização dos cuidados de saúde prestados aos doentes.
Em sentido oposto, verificou-se o crescimento dos Grandes Grupos Privados de Saúde com enormes investimentos em novos hospitais, em equipamentos tecnológicos, com recursos humanos cada vez mais diferenciados “desviados” do SNS por aliciantes remunerações, e desmotivados de um SNS que já não os cativa.
Foram anos de evolução em que se sentiu que o SNS padecia de uma grande debilidade estrutural na sua construção muito assente numa frágil base financeira e ineficazes modelos de financiamento. Verificou-se ainda uma gritante falta de inovação nos modelos de organização e gestão do SNS. As “Teias Ideológicas” em que se viu envolvido, impediram uma redefinição progressiva do seu Modelo Organizacional, contribuindo para a falta de transparência, e até nalguns casos, de conflito entre os interesses públicos e os privados, com manifesta diminuição de eficiência dos prestadores de saúde e incremento da dificuldade de acesso aos cuidados de saúde por parte da população.
Hoje em 2024, seria injusto afirmar que a área da saúde assiste a um regresso aos anos de 1974, mas é inegável que há circunstancias que se repetem. Portugal, tem nos dias de hoje mais de 60% da população com seguros ou subsistemas de saúde. Mais de 70% da população recorre ao sector privado para consultas e cirurgias com alguma frequência. Verifica-se novamente uma enorme assimetria na qualidade de prestação dos cuidados de saúde e na facilidade de acesso a estes cuidados de acordo com a localização geográfica. As classe mais desfavorecidas recorrem exclusivamente ao SNS por ausência de recursos financeiros que lhes permitam ter acesso à Medicina Privada. As classe mais altas recorrem quase em exclusividade aos Hospitais Privados pela celeridade no acesso, e pela excelência dos recursos humanos e tecnológicos ali existentes.
50 anos depois do 25 de Abril, exige-se uma reflexão profunda e honesta. É preciso não “meter a cabeça no saco” e aceitar que a situação atual do SNS não é boa. É preciso não ficar cego por ideologias e ver que algo tem que mudar.
É preciso perceber que em 50 anos, as doenças mudaram e os seus tratamentos também. É preciso estar consciente da evolução tecnológica que se verificou nesta área com elevados custos associados, criando novos desafios de financiamento. É preciso reconhecer que também os recursos humanos mudaram, bem como os seus desejos e revindicações.
É preciso ser criativo, inovador, e repensar o modelo de saúde para o nosso país que seja sustentável sob o ponto de vista financeiro, que seja apelativo para os profissionais que nele trabalham, e que dê uma resposta atempada e com qualidade a todas as populações, independentemente do seu estrato socioeconómico ou da sua localização geográfica.
Saúde para todos? Sempre!!!

QOSHE - O Regresso ao Passado na área da Saúde?? - Igor Moita
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O Regresso ao Passado na área da Saúde??

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24.04.2024

Durante o período do Estado Novo existia uma politica de Saúde alavancada nos valores ideológicos estabelecidos na constituição de 1933 na qual cabia ao Estado cuidar apenas dos pobres. Neste “Serviço Caritário de Saúde”, apenas os pobres e indigentes tinham direito a assistência gratuita mediante atestado passado pelas autoridades. A classe média pagava parte dos cuidados de saúde que recebia, e a classe mais alta ou os ricos recorriam a cuidados de saúde privados prestados em Casas de Saúde Privadas e em quartos particulares em Hospitais públicos. As instituições de saúde existentes à época eram as Misericórdias, que geriam um número importante de instituições hospitalares; os Hospitais Estatais Especializados localizados apenas nos grandes centros urbanos, os Serviços Médico Sociais que prestavam assistência médica aos benificiários da Caixa de Previdencia, e os Serviços de Saúde Publica mais vocacionados para os cuidados materno infantis e vacinação.
Os cuidados de saúde eram alías neste período, sobretudo curativos, com pouco investimento efectuado no domínio da prevenção, com excepção da prevenção de infecções e epidemias. Existia uma assimetria grande entre o litoral e o interior na qualidade e acesso aos cuidados de saúde, com uma percentagem muito alta da população sem acesso aos cuidados de saúde pelo seu afastamento geográfico.
Ainda durante a Ditadura, nos anos 70, é aprovado o novo Estatuto da Saúde e Assistência no qual cabia ao Estado criar serviços de saúde e assistência que fossem considerados indispensáveis. É aliás em 1971 que a Ordem dos Médicos através de Miller Guerra e Mário Mendes publica o Relatorio das........

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