De um académico de Lisboa a estupefacção pela recusa de notas e moedas numa dada rede de padarias e a imposição dos pagamentos por cartão:
“… tive de pagar 82 cêntimos de pão com cartão!
Parece, com efeito, uma anedota…
Mas a “norma” não admite excepção. A recusa é absoluta!”
Como “justificação” (que lhe terá soado) é que destarte se afasta liminarmente das suas portas os andrajosos “sem-abrigo” que por aí vagueiem em busca de uma côdea.
Como retrato social e tábua de valores empresariais nada de mais edificante!
Ao jeito de que urge extirpar do país a “peste grisalha” que o ‘emporcalha’… e os “andrajosos” que povoam ruas e avenidas vergados à sua tristes sina!
Queres pão? Qual é a solução?
É que daqui ninguém me arreda
Enquanto me exigirem o cartão
E me recusarem notas e moeda…
No neoliberalismo asfixiante em que as normas mais absurdas se editam, à revelia das regras em vigor, tudo se consente com enorme despudor.
Depara-se-nos, com efeito, quantas vezes, a recusa de tais meios de pagamento. O que importa indagar é se é lícito restringi-los, criando regras a que se não possam eximir os consumidores.
“A regra nas transacções de qualquer natureza”, proclama o Banco de Portugal, é “a aceitação de notas e moedas em euros como meio de pagamento”.
O numerário corresponde às notas e às moedas metálicas e é:
. Universal e de aceitação generalizada: tem de ser aceite como meio de pagamento de bens e serviços, ao contrário dos cheques e dos cartões de pagamento, que podem não o ser no giro comercial;
. De liquidez imediata: o valor é percebido de imediato.
“Fora da Zona Euro não tem, porém, curso legal forçado.”
Os normativos em vigor padecem de rigor: não estabelecem sanções em caso de violação. É norma sem sanção, imperfeição que importa suprir.
Mas “de uma tal recusa decorrem, porém, consequências no quadro da relação contratual entretecida; nos termos do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está adstrito, podendo inclusive o credor incorrer em mora, quando, sem motivo justificado, recusar a prestação oferecida”…
Há, porém, restrições ao pagamento em numerário, como decorre da Lei n.º 92/2017, de 22 de Agosto:
“É proibido pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3.000 €… Quando o pagamento for realizado por pessoas singulares não residentes em território português, e desde que não actuem na qualidade de empresários ou comerciantes, o limite ascende a 10 000 €.
É proibido ainda o pagamento em numerário de impostos que excedam 500 €.”
“Tais restrições não se aplicam às entidades financeiras que recebam depósitos, prestem serviços de pagamento, emitam moeda electrónica ou realizem operações de câmbio manual. E também não se aplicam aos pagamentos correntes.”
O Banco Central Europeu, fundado no valor reforçado da Recomendação 2010/191/UE, de 22 de Março de 2010, emanada da Comissão Europeia, adverte:
i. Os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si na adopção de outros meios de pagamento.
ii. A afixação de etiquetas ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores.
iii. Para que colha, terá o comerciante de invocar fundadamente uma razão legítima para o efeito às entidades que superintendam nos sistemas de pagamento.
iv. Entidades públicas que prestem serviços essenciais aos cidadãos não poderão aplicar restrições ou recusar em absoluto pagamentos em numerário sem razão válida, devidamente fundada e sancionada por quem de direito…
A violação de tais regras não tem, porém, entre nós, uma qualquer sanção, o que é de extrema gravidade.
Para o obtemperar, salvo melhor juízo, sempre que situações do jaez destas se detectem, é que o Branco de Portugal notifique os infractores a que ajustem a sua conduta aos ditames legais sob pena de desobediência, agindo, em conformidade, se o não fizerem.
A via, porém, para se sustar a onda que pode, entretanto, submergir-nos e tende a reduzir tudo ao digital (com as emergentes exclusões e discriminações), é forçar a mão ao legislador para que se aparelhem “in casu” sanções adequadas, proporcionadas e dissuasivas.
Só assim se aperfeiçoará em Portugal o sistema legal!

QOSHE - Pão? Só com cartão! - Mário Frota
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Pão? Só com cartão!

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22.01.2024

De um académico de Lisboa a estupefacção pela recusa de notas e moedas numa dada rede de padarias e a imposição dos pagamentos por cartão:
“… tive de pagar 82 cêntimos de pão com cartão!
Parece, com efeito, uma anedota…
Mas a “norma” não admite excepção. A recusa é absoluta!”
Como “justificação” (que lhe terá soado) é que destarte se afasta liminarmente das suas portas os andrajosos “sem-abrigo” que por aí vagueiem em busca de uma côdea.
Como retrato social e tábua de valores empresariais nada de mais edificante!
Ao jeito de que urge extirpar do país a “peste grisalha” que o ‘emporcalha’… e os “andrajosos” que povoam ruas e avenidas vergados à sua tristes sina!
Queres pão? Qual é a solução?
É que daqui ninguém me arreda
Enquanto me exigirem o cartão
E me recusarem notas e moeda…
No neoliberalismo asfixiante em que as normas mais absurdas se editam, à revelia das regras em vigor, tudo se consente com enorme despudor.
Depara-se-nos, com efeito, quantas vezes, a recusa de tais meios de pagamento. O que importa indagar é se é lícito........

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