Frequentemente, nesta coluna, salientei a importância do regime de dedicação exclusiva e o seu papel nos resultados obtidos no serviço hospitalar que dirigi durante mais de 3 décadas. A dedicação exclusiva, criada pelo Decreto-Lei n.º 73/90, é incompatível com o desempenho de qualquer outra atividade profissional pública ou privada, incluindo o exercício de profissão liberal, com algumas exceções, nomeadamente o desempenho de funções docentes em escolas dependentes ou sob tutela do Ministério da Saúde. A remuneração é majorada em cerca de 33% da remuneração base, quando no regime de tempo completo ( 35 horas semanais), e de 25% no regime de 42 horas. E, ainda, um acréscimo de 25% no tempo de trabalho para efeitos de aposentação.
Foi neste regime que eu e todos os meus colegas do serviço trabalhámos durante todo aquele tempo. Sejamos claros, apesar de significativa, esta majoração não compensava globalmente a retribuição que poderia ser esperada da atividade privada, mas sempre a considerei suficientemente motivadora. Mas é evidente que a maioria dos médicos do País assim não pensava. Como escreveu o Prof. Correia de Campos em junho de 2019, “mal gerida e nem sempre bem-amada, exceto no fim da vida ativa (pelo impacto positivo na aposentação), apesar de tudo, a exclusividade garantiu, no SNS, a qualidade, o brio, o sentido de pertença, as carreiras”. Razão suficiente para que ela devesse ter sido revigorada.
Ora, parece que este regime de trabalho também não foi geralmente bem-amado pelos sucessivos titulares da pasta ministerial, certamente por a considerarem “dispendiosa”. As próprias organizações de médicos, Ordem e sindicatos, mantiveram sobre ela uma posição ambígua, até recentemente. Certo é que a opção de dedicação exclusiva para novos candidatos no SNS foi revogada em 2009. Desde então o número de médicos em dedicação exclusiva tem vindo sistematicamente a di
minuir, sendo hoje uma minoria. Tal como o é também o número dos que estão nas 42 horas semanais.
Em 2 de dezembro, 2020, escrevi aqui: “Será lógico que um médico, com formação e aperfeiçoamento profissionais tão longos e caros, apenas trabalhe 35 horas semanais? É incompreensível que se não tenha procurado rentabilizar os recursos médicos, através do encorajamento de esquemas de trabalho mais intensivos, naturalmente com a respetiva compensação”. Já o tinha, aliás, escrito também em A Doença da Saúde, em 2001.
Pois, aí está agora a aprovação pelo governo do regime de ‘dedicação plena’, em 14 de setembro de 2023, na sequência da aprovação do Estatuto do SNS em 2022. Com 40 horas semanais, mais um terço no salário! Mas que se distingue do regime de dedicação exclusiva ao permitir a acumulação com o desempenho privado. A opção pela dedicação plena é voluntária para a generalidade dos médicos, mas a proposta estabelece diferenças “inaceitáveis” entre as obrigações dos médicos aderentes, consoante sejam da área Hospitalar, de Medicina Geral e Familiar, ou de Saúde Pública.
Disse o Ministro que “nós estamos convencidos que este modelo reúne as virtudes de ser bom para os cidadãos, porque aumenta a prestação de cuidados, ser positivo para o SNS, porque melhora o seu funcionamento, e ser compensador para os profissionais, porque verdadeiramente representa um aumento salarial muito significativo, de 33%”. Afinal talvez seja só de 29%, pelo menos para alguns!
A medida avança sem o acordo com os sindicatos médicos, que pedem um aumento da base salarial para todos os médicos e não apenas através de suplementos associados ao novo regime de trabalho, até porque a adoção do regime de dedicação plena implica, também, um “aumento do limite do trabalho suplementar para 250 horas/ano, aumento da jornada diária até 9 horas, fim do prejuízo do horário no descanso compensatório por trabalho noturno e inclusão de atividade regular e programada ao Sábado, aplicável a médicos hospitalares que não realizem serviço de urgência”.
Parece, à partida, que esta medida é mais orientada para ultrapassar o problema do limite das 150 horas de trabalho extra anuais, que tem paralisado as urgências e outras atividades hospitalares. Mas, talvez também por aparecer tarde demais, acabará por ter poucas probabilidades de aderência generalizada. E, ainda, porque mistura duas coisas que pouca relação tem uma com a outra, o regime normal de trabalho semanal e as horas extraordinárias cujo modelo de compensação tem de ser independente e revisto, para o tornar atrativo. Ninguém tem dúvida, exceto talvez os nossos decisores, de que o trabalho às dez da noite ou duas da madrugada não pode ser comparado com o das dez da manhã num qualquer dia da semana e, ainda pior, se for a um fim de semana.
Repito, mais uma vez: também não é assim que vamos lá!

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Dedicação Plena…A Nova Panaceia?

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06.12.2023

Frequentemente, nesta coluna, salientei a importância do regime de dedicação exclusiva e o seu papel nos resultados obtidos no serviço hospitalar que dirigi durante mais de 3 décadas. A dedicação exclusiva, criada pelo Decreto-Lei n.º 73/90, é incompatível com o desempenho de qualquer outra atividade profissional pública ou privada, incluindo o exercício de profissão liberal, com algumas exceções, nomeadamente o desempenho de funções docentes em escolas dependentes ou sob tutela do Ministério da Saúde. A remuneração é majorada em cerca de 33% da remuneração base, quando no regime de tempo completo ( 35 horas semanais), e de 25% no regime de 42 horas. E, ainda, um acréscimo de 25% no tempo de trabalho para efeitos de aposentação.
Foi neste regime que eu e todos os meus colegas do serviço trabalhámos durante todo aquele tempo. Sejamos claros, apesar de significativa, esta majoração não compensava globalmente a retribuição que poderia ser esperada da atividade privada, mas sempre a considerei suficientemente motivadora. Mas é evidente que a maioria dos médicos do País assim não pensava. Como escreveu o Prof. Correia de Campos em junho de 2019, “mal gerida e nem........

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