Em 15 de abril de 1967, o noticiário da RTP - o único canal que existia - anunciava a campanha de promoção turística Abril em Portugal. Há alguns anos, a Câmara Municipal de Matosinhos apresentou uma exposição, comissariada por José Bártolo e Sara Pinheiro, que justamente se designou Portugal Imaginário - Turismo, Propaganda e Poder (1910-1970). Na verdade, as imagens de divulgação turística desse período apresentavam um país moderno, civilizado, soalheiro que contrastava com a realidade de país pobre, atrasado, carregado de gente vestida de negro por tradição ou como resultado dos milhares de jovens mortos na Guerra Colonial.

Foi esse tempo de repressão e impunidade, partilhado entre Brasil e Portugal, que Chico Buarque cantou no seu “Fado Tropical”: “Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora.../ Com avencas na caatinga/ Alecrins no canavial/ Licores na moringa/ Um vinho tropical/ E a linda mulata/ Com rendas do Alentejo/ De quem numa bravata/ Arrebata um beijo.”

Mas por uma dessas estórias benfazejas, a ditadura lançou uma campanha premonitória - como alguém que adivinha o seu fim - e abril tornou-se um mês em que celebramos Portugal (podia ter sido março).

Na noite de 24 para 25 de Abril, eu estava acordada a estudar para um “ponto” (assim lhe chamávamos) de Filosofia e ouvi uma das canções que serviu de senha E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho. Logo a seguir, o meu irmão, que estava na tropa e com Guia de Marcha para a Guiné (o pior dos destinos), telefonou a desoras informando que era provável que tivesse de desaparecer por uns tempos. Mais nada disse, mais nada podia dizer. Nunca se sabia quem podia estar a ouvir e o meu pai, como eu, como o meu irmão estávamos sinalizados pela polícia política.

Eu tinha 16 anos e faria no dia seguinte 17 anos, mas conhecia o medo, esse fantasma que nos acompanhava como uma segunda pele. Mas não se podia ignorar a pobreza bem visível, mesmo no centro da cidade (o meu caminho diário por entre o imenso bairro de lata bem perto do Areeiro), a quantidade de analfabetos, os slogans como “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses” (num país com elevados índices de alcoolismo), as proibições e proibições (“não se pode, não se pode”) desde andar de mão dada na rua, aos livros que queríamos ler (no Liceu Filipa de Lencastre, que frequentava, fui várias vezes “chamada à Reitora” por estar a ler Eça de Queiroz e, por isso, me retiraram do Quadro de Honra).

Mas era a guerra que mais pesava nas nossas vidas: eu tinha um irmão e era certo que iria para África, mas não era certo que regressasse. Essa angústia espalhava-se por toda a família e, de alguma forma, vivíamos suspensos desse porvir. No Natal, fazia-se profundo silêncio quando ouvíamos as mensagens dos militares, aqueles olhares tristes ficavam em nós como uma sina. Éramos um povo triste e murado, proibido de sair das suas fronteiras, proibido de falar, de pensar, de ver.

É por isso tão importante construir todos os dias essa condição imperfeita que é a democracia. Ao mesmo tempo que não podemos desistir, importa entender a desilusão, o descontentamento, a rejeição que vão crescendo e, sobretudo, importa ouvir os mais jovens. Devo à democracia ter podido estudar e conseguir viver melhor que os meus pais, mas essa não é uma expectativa garantida às novas gerações. Empregos precários, falta de habitação, dificuldade de conciliação de trabalho e família, um planeta a desfazer-se, a precariedade generalizada.

Esta semana a OEI lançou a campanha #UmFuturoParaOQueImporta, que procura dar a palavra aos mais jovens a partir de três reflexões: o que cada um está a viver, o que é para si mais importante, como estabelecer o diálogo com o que os mais velhos viveram. Como se diz na canção, “não podemos ignorar”.

Eu que pertenço aos mais velhos e, em abril de 1974, era jovem, gostava de partilhar o desejo de que abril não desapareça e a sua energia nos sirva para construir um mundo melhor.

QOSHE - abril, abril - Ana Paula Laborinho
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17.04.2024

Em 15 de abril de 1967, o noticiário da RTP - o único canal que existia - anunciava a campanha de promoção turística Abril em Portugal. Há alguns anos, a Câmara Municipal de Matosinhos apresentou uma exposição, comissariada por José Bártolo e Sara Pinheiro, que justamente se designou Portugal Imaginário - Turismo, Propaganda e Poder (1910-1970). Na verdade, as imagens de divulgação turística desse período apresentavam um país moderno, civilizado, soalheiro que contrastava com a realidade de país pobre, atrasado, carregado de gente vestida de negro por tradição ou como resultado dos milhares de jovens mortos na Guerra Colonial.

Foi esse tempo de repressão e impunidade, partilhado entre Brasil e Portugal, que Chico Buarque cantou no seu “Fado Tropical”: “Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora.../ Com avencas na caatinga/ Alecrins no canavial/ Licores na moringa/ Um vinho tropical/ E a linda mulata/ Com rendas do........

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