Recentemente, dediquei-me à leitura das 184 páginas de um Programa Eleitoral e as 185 páginas do Programa do XXIV Governo Constitucional. Analisei temas, termos, expressões e frequência de palavras utilizadas. Procurei a visão do estadista, sem deixar de reconhecer a importância da observação sob a perspetiva do político.

Portugal é um pequeno paraíso com segurança e paz aparentes. Devemo-lo à nossa “insignificância” no plano internacional, muita sorte e, em parte, a pequenos milagres dos nossos Serviços de Informações, Forças de Segurança e Forças Armadas, que operam com recursos limitados e cooperam com congéneres estrangeiros, apesar de estes estarem mais direcionados para a defesa dos seus próprios interesses.

Facilmente nos esquecemos que paz e segurança não são um direito do Homem. O 'direito à paz e segurança', proclamado pelas Nações Unidas desde 1945, não é algo que exista na Natureza, conquista-se. Neste contexto, Portugal enfrenta a urgente necessidade de definir o seu papel na guerra de civilizações em curso. Estamos a viver um conflito global, e mais cedo ou mais tarde, seremos forçados a enfrentar novas realidades. Estaremos preparados para lidar com as consequências da inação, vulnerabilidades internas e total dependência externa?

A Natureza é implacável, e frequentemente, a violência é vista como legítima: por organizações que detêm poder militar, económico ou ideológico ou legitimada pelo poder político. Na última década, testemunhámos um aumento nos índices de violência em sociedades e entre Estados, atingindo níveis considerados impensáveis no mundo pós-1945. Esses índices continuam a crescer e a expandir-se geograficamente, num ritmo sem precedentes desde as Guerras Mundiais. A violência é a norma.

A polarização ideológica tem crescido nas sociedades, alimentando o surgimento de extremismos em diversas esferas e um aumento de hostilidades contribui para um processo de 'descivilização' em que descontextualizar eventos históricos é perigoso e pode levar facilmente ao ódio. Uma simples faísca pode acender um fogo devastador, especialmente quando a ignorância coletiva e o desconhecimento da História obscurecem eventos como o Massacre de Lisboa de 1506.

As modestas contribuições financeiras de Portugal à ONU e à NATO, não alcançando metas, bem como a representação na União Europeia e os assentos ambicionados em organizações internacionais – como declarado no Programa Eleitoral, não garantirão a nossa segurança diante os desafios previstos por analistas internacionais e nacionais em áreas críticas como política, economia, segurança e defesa. Além disso, a nossa associação a qualquer organização implica benefícios futuros, mas também uma corresponsabilidade nas decisões e posturas públicas destas entidades, aumentando a nossa exposição a todos os riscos.

O exemplo mais recente foi a visita do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em 24 de março de 2024, à Universidade Al-Azhar no Cairo, em que louvou o empenho em prol da paz do Xeque Ahmad Al-Tayyeb, um responsável religioso muçulmano conhecido pelas suas posições extremistas, numa instituição com a mesma visão. Não reconhece direitos a grupos minoritários, mulheres ou crianças e considera que o ataque terrorista a Israel de 07 de outubro foi justificado e de louvar e deveria ser replicado em todas as sociedades ocidentais onde haja Judeus ou infiéis.

Neste quadro, é essencial reconhecer a importância de uma Estratégia Nacional abrangente em todas as áreas críticas para o futuro de Portugal. A sua falta coloca-nos numa situação semelhante à dos planos de evacuação das embaixadas portuguesas: em momentos de crise, encontrarmo-nos dependentes de evacuações realizadas por Estados 'amigos' e não havendo lugar, corremos para a fronteira mais próxima.

Pensem no Interesse Nacional e na Estratégia Nacional como a panaceia para Portugal, o remédio que iniciará o processo de cura dos males atuais. Não é o suficiente, mas é um começo. No ano em que se comemora meio século após o 25 de Abril, é a oportunidade perfeita para desenvolver a primeira 'Estratégia Nacional de Portugal' a longo prazo.

Por comparação, desde a década de 80, Espanha adotou uma Estratégia Nacional evidente. Utilizou os instrumentos e cargos disponíveis na União Europeia para maximizar o seu próprio benefício.

Estrategicamente, ocuparam posições influentes, particularmente nas áreas das pescas e da cooperação externa, alavancando o seu Interesse Nacional. Este modelo de ação foi discreto e eficaz. Em 2021, Espanha lançou a sua nova Estratégia Nacional, 'España 2050’. Enquanto nos focamos em gestos simbólicos de cooperação com a CPLP e os PALOP, enviando umas resmas de papel e dois ou três computadores, Espanha já lá está desde 2006, agora com o 'Plan África III', priorizando Estados como Angola e Moçambique.

Temos atualmente todas as instituições à espera de definir claramente a sua Missão. No apoio à nossa política externa e interna (securitária), economia e cooperação, defesa e segurança, dispomos das instituições adequadas e a legislação suficiente para nos considerarmos operacionais. Contamos com estruturas de cooperação entre os diversos atores políticos e Serviços de Informações (SIED, SIS – informações estratégicas – e a esquecida CISMIL – informações táticas –), Forças de Segurança e Forças Armadas, nomeadamente o Conselho Superior de Segurança Interna, o Sistema de Segurança Interna (SSI), a Unidade de Coordenação Antiterrorismo (UCAT), entre outras plataformas. Não precisamos de mais papelada, legislação, grupos de estudo, ideias cinematográficas de capacidade operacional ou quotas de produção de relatórios burocráticos em que nada adiantam ao Decisor e ao Interesse Nacional.

O que realmente necessitamos é de uma Missão clara e de coordenação efetiva, que vá além de reuniões formais sem resultados concretos. Em alguns casos, são necessárias reestruturações ou ajustes estruturais, uma gestão eficaz dos recursos limitados disponíveis, delimitação de competências sem sobreposição das áreas de responsabilidade, um número adequado de antenas no exterior e uma política de recrutamento e formação que atraia e mantenha talentos, oferecendo remunerações competitivas para prevenir a fuga de talentos e mitigar vulnerabilidades em áreas críticas.

O Programa do Governo menciona os Serviços de Informações, aborda as Forças de Segurança e a Defesa Nacional. Refere diversas estratégias que são transpostas da UE, não aportando uma “Estratégia Nacional”. Fica aquém, mas tenho esperança. Pode ser que esta mensagem chegue a quem a entenda e reconheça a oportunidade.

Até lá, resta-nos fazer como temos feito, e que nós portugueses somos dos mais qualificados e experientes a fazer: “embrace the suck” – o que significa na gíria militar conscientemente aceitar ou apreciar algo que é extremamente desagradável, mas inevitável.

Auditor de Defesa Nacional e Consultor de Defesa na Comissão Europeia

QOSHE - Interesse Nacional ou “Sim, Senhor Primeiro Ministro!” - António Brás Monteiro
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Interesse Nacional ou “Sim, Senhor Primeiro Ministro!”

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14.04.2024


Recentemente, dediquei-me à leitura das 184 páginas de um Programa Eleitoral e as 185 páginas do Programa do XXIV Governo Constitucional. Analisei temas, termos, expressões e frequência de palavras utilizadas. Procurei a visão do estadista, sem deixar de reconhecer a importância da observação sob a perspetiva do político.

Portugal é um pequeno paraíso com segurança e paz aparentes. Devemo-lo à nossa “insignificância” no plano internacional, muita sorte e, em parte, a pequenos milagres dos nossos Serviços de Informações, Forças de Segurança e Forças Armadas, que operam com recursos limitados e cooperam com congéneres estrangeiros, apesar de estes estarem mais direcionados para a defesa dos seus próprios interesses.

Facilmente nos esquecemos que paz e segurança não são um direito do Homem. O 'direito à paz e segurança', proclamado pelas Nações Unidas desde 1945, não é algo que exista na Natureza, conquista-se. Neste contexto, Portugal enfrenta a urgente necessidade de definir o seu papel na guerra de civilizações em curso. Estamos a viver um conflito global, e mais cedo ou mais tarde, seremos forçados a enfrentar novas realidades. Estaremos preparados para lidar com as consequências da inação, vulnerabilidades internas e total dependência externa?

A Natureza é implacável, e frequentemente, a violência é vista como legítima: por organizações que detêm poder militar, económico ou ideológico ou legitimada pelo poder político. Na última década, testemunhámos um aumento nos índices de violência em sociedades e entre Estados, atingindo níveis considerados impensáveis no mundo pós-1945. Esses índices continuam a crescer e a expandir-se geograficamente, num ritmo sem precedentes desde as Guerras Mundiais. A violência é a........

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