Em casa, o 25 de Abril de 1974 era algo adquirido, mas também conseguido. Por isso cresci rodeado de resistência e liberdade; expressas em histórias, memórias, livros, pósteres e na educação.
De qualquer modo, percebi melhor o que foi o fascismo e o contraste de crescer em liberdade, ao não herdar certos gestos. Adquiri essa percepção fina ao circular com o meu pai e com a sua geração.

Mulheres e homens que nasceram nos Anos 20 e 30 do século XX. Combatentes precoces contra a ditadura e que passaram mais tempo de vida em repressão total, a resistir, do que em democracia.

Aqueles que já no pós-25 de Abril, e até à sua morte, pela morfologia dos hábitos do fascismo nunca desaprenderam a falar a sussurrar com torsos debruçados sobre mesas para aproximar as cabeças em diálogos silenciosos, a terminar todas as conversas com um “não contes a ninguém”, a dar três voltas em torno de casa antes de estacionar, a promover diálogos em descampados ou debaixo de onde os aviões levantam voo; e a dividir a vida pessoal em células incontactáveis entre si, entre outros comportamentos mais íntimos consequência dos efeitos da psique do fascismo.

Tenho demasiado respeito por essas vivências para me sentir hoje, nos 50 anos do 25 de Abril, refém de algum tipo de moralidade ancestral. Não basta bater no peito em nome da Revolução para acudir a uma espécie de tragédia antecipatória do aumento do peso da extrema-direita no Parlamento. Uma revolução não se fez, faz-se, é um estado permanente.

Assim, o choque geracional começou nos Anos 90 do século XX. Eu e os meus, íamos sinalizando, ora por discursos ou acções, como o capitalismo avançado ia destruindo as ideias de Abril e legitimando novas formas de fascismo. No mesmo andamento, observávamos a desublimação repressiva dos nossos pais, trocando a direccção colectiva sobre os destinos de uma ideia, por uma alienação do consumo, celebrada por uma casa de férias, dois carros na família e um VHS.

É evidente que esse tom acusatório, ou a divergência sobre as conquistas revolucionárias, nem sempre foram bem recebidas em nossas casas, embora uma compreensão mútua se tenha instalado.
Não foi, por isso, uma ironia do destino quando, na primeira década deste século, passei uma madrugada num bairro auto-construído da periferia de Lisboa com o meu pai - já nos 70 anos - , dentro de um café de porta fechada e cortinas corridas, a passar as suas experiências de resistência no tempo do fascismo.

Isso porque um conjunto de amigos meus, moradores do bairro em causa, eram quotidianamente assediados pelas forças policiais devido à sua militância anti-racista. Eram retidos sem causa pela PSP, os comércios dos seus familiares visitados para inspeções diárias, que resultavam em multas que inviabilizavam os negócios, e uma vigilância permanente da documentação legal dos próprios e dos seus próximos; toda a coação necessária para que os atropelos aos direitos não fossem denunciados.

Ainda esta semana tive a oportunidade de assistir às contradições da nossa democracia: 120 moradores dos bairros do Zambujal e de Montemor, marcaram presença na Assembleia Municipal de Loures para contestar as demolições nos respectivos bairros, encetadas pela Câmara Municipal.

Foram recebidos por uma carrinha da PSP (que, entretanto, saiu) e a colocação de baias protectoras à entrada, movimentos inéditos de acordo com os deputados municipais presentes.

A Assembleia tem duas bancadas em lados opostos, cada uma com cerca de 30 e poucos lugares.

Numa delas estavam os 120 moradores citados mais alguns apoiantes, na oposta estavam menos de 30 assessores autárquicos. Ambas as bancadas são designadas para o público. Poucos minutos depois do início da assembleia, aquela divisão classista e racial era de tal modo incómoda - tanto no silêncio, como na contestação - que a presidente da Assembleia Municipal teve de anunciar que ambas as bancadas são de acesso livre e não-reservadas.

A vereadora responsável pela Habitação não foi capaz de dizer quantas mais casas vão ser demolidas nem quando. Despendeu de muitos minutos e não conseguiu esclarecer porque não fez uma intervenção articulada com as famílias despejadas de modo que não ficassem na rua. Evocou toda a sua acção adivinhem em nome do quê? Exato, os 50 anos do 25 de Abril. Pelo caminho ainda disse que iria fazer o esforço de ajudar todos os lourenses que estão nessa condição, mas apenas esses, porque Loures não tem mais espaço para acolher situações análogas. Deixo as interpretações desta última frase para vocês, estimados leitores.

Em toda a duração da assembleia, sempre que um deputado, vereador ou presidente de junta alegava o 25 de Abril, havia um suspiro colectivo do público. Basta olhar para o texto da Constituição e para as vidas dos moradores ali presentes. Escolhemos a desigualdade e não a revolução.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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Despojos do fascismo e suas reminiscências

25 1
20.04.2024

Em casa, o 25 de Abril de 1974 era algo adquirido, mas também conseguido. Por isso cresci rodeado de resistência e liberdade; expressas em histórias, memórias, livros, pósteres e na educação.
De qualquer modo, percebi melhor o que foi o fascismo e o contraste de crescer em liberdade, ao não herdar certos gestos. Adquiri essa percepção fina ao circular com o meu pai e com a sua geração.

Mulheres e homens que nasceram nos Anos 20 e 30 do século XX. Combatentes precoces contra a ditadura e que passaram mais tempo de vida em repressão total, a resistir, do que em democracia.

Aqueles que já no pós-25 de Abril, e até à sua morte, pela morfologia dos hábitos do fascismo nunca desaprenderam a falar a sussurrar com torsos debruçados sobre mesas para aproximar as cabeças em diálogos silenciosos, a terminar todas as conversas com um “não contes a ninguém”, a dar três voltas em torno de casa antes de estacionar, a promover diálogos em descampados ou debaixo de onde os aviões levantam voo; e a dividir a vida pessoal em células incontactáveis entre si, entre outros comportamentos mais íntimos consequência dos efeitos da psique do fascismo.

Tenho demasiado respeito por essas vivências para me sentir hoje, nos 50 anos........

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