Na memória de Eduarda Dionísio.
Aos amigos da Casa da Achada:
José Rodrigues e Maria Alzira Seixo
Aos professores de agora.

Mário Dionísio (1916-1993) não dirá muito à maioria dos que hoje, já nascidos depois da integração europeia, vindos para a vida depois das “conquistas de Abril”, filhos mais da América do que de uma cultura – a portuguesa – que se afundou nos mares da globalização, são estudantes ou, se calhar, professores. Autor de um livro intitulado A Paleta e o Mundo (1963 – Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores) - a grande obra de história da pintura que teve reconhecimento nos anos de 1960 e que, hoje, em alfarrábios podemos ainda encontrar, Mário Dionísio escreveu alguns dos grandes livros do século XX: A Morte é Para os Outros (ficção) ou Memória dum Pintor Desconhecido (poesia). Para os que são bibliófilos ou bibliómanos (é o meu caso), a monumental 1ª edição de A Paleta e o Mundo, belíssima, é um daqueles livros que ficam para sempre.

Mas ir directo à leitura significa ir directo à leitura de um livro e, a partir dele, dizer para o leitor ir à procura de quem o escreveu. Quem foi Mário Dionísio? Qual a importância deste poeta, ensaísta, ficcionista e pintor? E, porque disso se trata: professor. Em tempo de esmagamento desta nobre profissão, ler O Quê? Professor?! impõe-se. Deveria ser livro essencial na formação de professores.

O autor de contos que foram de leitura prazerosa (quando havia literatura no ensino!) nos anos de 1980 e ainda de 1990 (“Assobiando à-vontade”, que conto maravilhoso!), o teórico e poeta cuja obra se inscreve no movimento literário do neo-realismo, esclarece na sua Autobiografia (edições O Jornal, 1987), que essa gaveta – a do neo-realismo – não basta para o entender. Dionísio não foi só um neo-realista. A prová-lo, o leque de processos literários que, ao longo dessa obra, perseguiu (Altolaguirre e Lorca são duas vozes indispensáveis do seu pessoal neo-realismo), com o desejo de diversificar, de reinventar. Imaginação narrativa, coloquialidade, isto é, uma obra atenta ao mundo, mas que se altera, que muda ao longo das décadas de 40 a 80, evoluindo em direcção àquilo que, à falta de melhor, será o cruzamento da prosa vinda de Álvaro de Campos com o tom onírico que se lê justamente em Lorca ou em Altolaguirre. Imaginação e reinvenção, aliadas a um rigor, isso mesmo encontramos no livro de hoje: O quê? Professor?!, comprovando algo muito simples para o nosso tempo: quem disse que ser professor inviabiliza a imaginação e a vontade de reinvenção permanente?

Onde se lê reinvenção, leia-se, caro leitor, inscrição numa história de cultura, capacidade de dialogar com o passado e projectar um futuro. Trata-se duma edição rigorosa da Casa da Achada, com organização de Rui Canário, Sofia Ortolá e de Maria João Brilhante. Com a leitura de Autobiografia constitui o melhor retrato do professor-poeta-pintor.

Nascido em Lisboa, na rua Andrade, nº 2 (nos Anjos), num rés-do-chão, Mário Dionísio (que vem a assinar textos sob pseudónimo para fugir aos olhos de censores: Leandro Gil e José Alfredo Chaves) ficou órfão de pai, combatente na guerra de 1914-1918. Filho único. Nascido, portanto, no seio da pequena-burguesia, confessa: “Herdei o respeito pelo trabalho e pela palavra dada, o dizer as coisas cara a cara, uma costela ainda orgulhosamente popular; do outro a arte, a atracção do invisível”. Duas fontes: cultura do povo e aristocracia. Licenciado em 1938, descobre Pessoa antes de Pessoa ser da moda, sendo arguente da sua tese Agostinho de Campos, que elogia a sua ousada leitura da “Ode Marítima”. Inquieto, como todo o professor deveria ser, e curioso, publicou ainda em tempo de liceu a revista Prisma (um só número) e dois livros (“livrecos”, lê-se na Autobiografia), que riscará da sua bibliografia. Mas em 1934 funda e dirige o semanário Gleba e entra para a redacção de Liberdade, no mesmo dia de Cunhal e no dia a seguir a Magalhães Vilhena.

Essa combatividade pela liberdade reflecte-se no volume de ensaios sobre educação – houvesse um Ministro da Educação que conhecesse este e outros livrinhos esquecidos!! Há teses simples que reenviam a essa acção pedagógica já patente nas publicações de juventude. Para Mário Dionísio ser professor é ter livros e leituras, memória e coragem para encetar o caminho de auto-descoberta na relação recíproca que deve estabelecer-se entre quem ensina e quem aprende.

Transcrevo de O Quê? Professor?!: “O meu gosto de ensinar e de vir a entender alguma coisa do que poderá chamar-se “educação” […] deve ter começado muito cedo”. Como a mãe faleceu cedo, “dar lições” particulares foi o trilho óbvio, mas ser professor não significou para Dionísio “fazer os trabalhos dos alunos”, nem sequer “o ganha-pão repugnante”. E cedo Mário Dionísio resistirá a toda a sorte de facilitismos, aplicando um método bem simples: “o de proceder com eles [os alunos] exactamente ao contrário [do que esperavam]”. A questão era, no ensino do Português, esta (como é hoje): “Tentar que compreendessem o que eu dificilmente lhes explicava.” (p.20).
Lamentando a sua terrível experiência de aluno, vítima de professores que “deseducavam”, Dionísio defenderá nesse seu livro algo que me parece ser urgente na docência do Português em 2024: ser professor é fazer os alunos crescerem por dentro.

A aula verdadeira é a que fomenta o silêncio da concentração sobre os textos, a atmosfera mágica que nasce da sedutora comunicação viva. Dois professores são elogiados: Câmara Reys e Arnaldo Mendes (o pai do
actor José Manuel Mendes!!). Sobre este último não resisto a transcrever: “Com ele comecei a entender que nos textos não havia só o que, mas também o como contavam e que era neste como que estava afinal o que contavam.” (p.30). Em aulas assim “Ninguém falava e todos falavam. O toque para a saída surpreendia sempre. Como se passava o tempo? O mundo tornavase maior e outra coisa. Crescíamos por dentro.” (p.29).

Pois bem, o livro O Quê? Professor?! fala-nos da “importância humana” da função do ensino. Defende-se um princípio claro: “Faça-se negócio com tudo, menos com a saúde e a educação” (p.30). Professor e escritor, criador no pleno sentido da palavra, ao longo da sua vida docente, Dionísio ajuda-nos a pensar sobre o que é educar hoje: “A transformação do nosso ensino faz parte integrante da transformação do país. Só poderão realizá-la os que efectivamente a querem. Se a democracia não se faz sem democratas – e por isso há que afastar os que o não são – como se poderia fazer sem eles (e eles só) a democratização do ensino?” (p.187).

Direi mais: este livro contempla hoje problemas que permanecem irresolúveis: para além de a educação se ter transformado em negócio, raramente se discute a nossa pobreza social com o facto de a escola e a Universidade não conferirem utopia, sentido crítico a quem nelas
gasta os primeiros quinze, vinte anos de vida. Leia-se: “Não é só aos professores que tais esforços se exigem [o fomentar essa utopia, o fazer cultura e multiplicá-la]. É também aos alunos. E às famílias. Que, no ensino também, tudo depende daquele espírito de empenhamento e dádiva completa, de responsabilidade, entusiasmo e vigilância.” (p.187).

O livro de Mário Dionísio – que veio a ser professor na Faculdade de Letras, já muito entrado em idade e leccionando técnicas de redacção (que falta faz hoje!!) – e director de programas da RTP em Janeiro de 1976 (com Augusto Abelaira), é revelador de inúmeras facetas desta fascinante personalidade. Desde logo, da sua coragem: homem de esquerda, nem por isso deixou de invectivar quantos, em nome de modas inúteis, quiseram fazer da escola a indústria do tudo-igual e que nada tinha ou tem que ver com a democratização. Dirá: “[Em Portugal a educação consistiu antes de Abril] no esmagamento do espírito criador, na imposição do obscurantismo policialmente organizado”. No pós-Abril, no consentimento “da destruição da escola, contemporizando com a corrupção total da sua função e levando assim às últimas consequências o que o fascismo, por outros meios, conservou” (p.192).

De facto, hoje muitos se queixam do ambiente asfixiante que se vive no ensino. Mário Dionísio fez o retrato fiel: depois da Revolução não houve uma planificação de fundo de interesse nacional, insistiu-se “na mentalidade burocratizada nos serviços que, sob o lema levianamente agitado de ‘acabar com a burocracia’, chegou à pura confusão e emperramento de tudo; [sem esquecer] a maioria esmagadora de agentes de ensino sem qualquer preparação profissional específica – fruto da inépcia governativa” (artigo de 20 de Outubro de 74, no Vida Mundial). Não são palavras de hoje, estas?

Deixo uma última transcrição, desta feira sobre os exames: “[…] esta preocupação [com os exames] liga-se a tudo quanto se queira menos a qualquer coisa de muito importante, de que eles são apenas uma manifestação espinhosa: a preparação escolar, o nível cultural, o
desenvolvimento da personalidade dos estudantes em todos os graus de ensino. E é na verdade estranho como tanta gente se preocupa com o gravíssimo problema dos exames sem se preocupar absolutamente nada com o que os nossos estudantes – o futuro do país – aprendem ou
não aprendem, com a preparação que adquirem ou deveriam adquirir, outra maneira de dizer: com o que lhes ensinam, ou não.” (p.180).

Quem vier a ser Ministro da Educação depois de Março deste ano terá alguma vez lido Mário Dionísio?

QOSHE - "O Quê? Professor?!", aos professores e ao antigo ministro - António Carlos Cortez
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"O Quê? Professor?!", aos professores e ao antigo ministro

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13.01.2024

Na memória de Eduarda Dionísio.
Aos amigos da Casa da Achada:
José Rodrigues e Maria Alzira Seixo
Aos professores de agora.

Mário Dionísio (1916-1993) não dirá muito à maioria dos que hoje, já nascidos depois da integração europeia, vindos para a vida depois das “conquistas de Abril”, filhos mais da América do que de uma cultura – a portuguesa – que se afundou nos mares da globalização, são estudantes ou, se calhar, professores. Autor de um livro intitulado A Paleta e o Mundo (1963 – Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores) - a grande obra de história da pintura que teve reconhecimento nos anos de 1960 e que, hoje, em alfarrábios podemos ainda encontrar, Mário Dionísio escreveu alguns dos grandes livros do século XX: A Morte é Para os Outros (ficção) ou Memória dum Pintor Desconhecido (poesia). Para os que são bibliófilos ou bibliómanos (é o meu caso), a monumental 1ª edição de A Paleta e o Mundo, belíssima, é um daqueles livros que ficam para sempre.

Mas ir directo à leitura significa ir directo à leitura de um livro e, a partir dele, dizer para o leitor ir à procura de quem o escreveu. Quem foi Mário Dionísio? Qual a importância deste poeta, ensaísta, ficcionista e pintor? E, porque disso se trata: professor. Em tempo de esmagamento desta nobre profissão, ler O Quê? Professor?! impõe-se. Deveria ser livro essencial na formação de professores.

O autor de contos que foram de leitura prazerosa (quando havia literatura no ensino!) nos anos de 1980 e ainda de 1990 (“Assobiando à-vontade”, que conto maravilhoso!), o teórico e poeta cuja obra se inscreve no movimento literário do neo-realismo, esclarece na sua Autobiografia (edições O Jornal, 1987), que essa gaveta – a do neo-realismo – não basta para o entender. Dionísio não foi só um neo-realista. A prová-lo, o leque de processos literários que, ao longo dessa obra, perseguiu (Altolaguirre e Lorca são duas vozes indispensáveis do seu pessoal neo-realismo), com o desejo de diversificar, de reinventar. Imaginação narrativa, coloquialidade, isto é, uma obra atenta ao mundo, mas que se altera, que muda ao longo das décadas de 40 a 80, evoluindo em direcção àquilo que, à falta de melhor, será o cruzamento da prosa vinda de Álvaro de Campos com o tom onírico que se lê justamente em Lorca ou em Altolaguirre. Imaginação e........

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