Apropósito dos paupérrimos debates desta campanha e que os canais de televisão venderam como produto acabado da indigência a que chegámos, vale a pena lembrar um livrinho, hoje esquecido, e que a Gradiva publicou no já longínquo ano de 1995 (quando a geração dos actuais políticos - a minha, diga-se - andaria já nas respectivas jotas a fazer pela vida, sendo que alguns deles, em 95, nem dez anos teriam…). O livrinho é este: A Televisão: Um Perigo para a Democracia, de Karl Popper. “Ladra do tempo, criada infiel”, eis uma das muitas imagens a que o filósofo recorre para descrever a “Medusa do nosso tempo”, imagem de Vladimir Porche, que, em 1955, já adivinhava os nefastos efeitos da caixa mágica sobre a nova humanidade - a “humanidade sentada”.

Vale a pena lembrar este livro de Popper porque, exceptuando Paulo Raimundo, e, talvez, Rui Tavares, todos os outros candidatos, em maior ou menor grau, falaram não para os portugueses, mas para as televisões. Não admira: são os preferidos do sistema oco. A eles cabe dizer as frases-chave que serão os lugares-comum vendidos como sentenças inspiradas. Frases, sentenças, o mais das vezes pensadas por “directores de campanha”, ou “consultores de imagem” que, licenciados à bolonhesa em cursos de comunicação social, ascenderam ao patamar de “conselheiros” porque sim, por terem um “jeitinho” para as palavras e passam por criativos.

Ora, Paulo Raimundo e Rui Tavares - aquele, mais do que este - não sabem (ou não aceitam) ir na crista da onda da moda e, inconscientemente, saberão que os canais da TV vêem neles produtos pouco vendáveis. Os meios de comunicação de massas - o conglomerado TV/redes sociais - tudo determinam. Marcelo Rebelo de Sousa, por muitos mergulhos no Tejo que tenha dado, perdeu as eleições para a Câmara de Lisboa, em 1989, para Jorge Sampaio. Era ainda outro tempo. É sintomático da ideologia oca que trinta anos depois seja ele o Presidente-Selfie, um verdadeiro produto da televisão. Hoje as redes sociais formatam o discurso que vende e a TV imita-as. Por consequência, seguidos por milhares no TikTok, no “Insta” ou noutras plataformas, os mais novos encontram em Ventura o político que os agita e inspira. Elogiou-se, durante longo tempo, em Marcelo, a sua capacidade de comunicar, a seu instinto para ser um político. Agora é a vez de Ventura que, explorando a estratégia de Trump e vendo a popularidade de Marcelo, apesar de ser um provinciano ressentido, subiu do patamar de comentador da bola, ao de político que muitos ouvem. É a ideologia oca a funcionar em nome dos interesses de poucos para sofrimento futuro de muitos: os que pagam impostos, a exaurida classe média.

Num certo sector do centro-esquerda há quem pense que Pedro Nuno é o homem da “ação” e da decisão. Ricardo Araújo Pereira, caricaturando-o, viu bem o modo como, consciente ou inconscientemente, este, como outros políticos de agora, pensam a política em função do onde, quando e como pode a imagem vender mais. Com que gola-alta se pode vencer as gravatas de seda. É, de facto, a televisão que, “trabalhando conteúdos”, manipula e influencia o voto popular. Se Kennedy, em 1960, venceu Nixon também por causa da sua imagem, a verdade é que a “New Frontier” tinha uma ancoragem política forte: a inspiração pela palavra, não só a imagem. A desnuclearização nasceu dessa palavra-imagem de JFK. O seu irmão, Robert, pelo poder da palavra, galvanizou populações inteiras, sobretudo os mais pobres, indo até onde o deixaram ir: até ao seu assassinato. E Luther King, que líder político hoje poderia ter aquele domínio da palavra e da acção comprometida? De Gaulle não ignorava o poder das câmaras, é certo. Quando Sartre criticou as suas políticas em 1967-1968, De Gaulle foi claro: “Não se pode calar Voltaire”.
Mário Soares, já agora, era um exímio leitor da realidade popular a partir do que a própria televisão lhe dava enquanto espelho do “país real”. Sem papel, falando de cor, quem não se recorda da sua verve? A questão é que nenhum destes líderes políticos deixaram de pensar por si. Serviam-se da televisão. Não a serviam. Pensar para eles era mesmo pensar: escrever, reflectir, agir em conformidade, por muitas críticas de que pudessem ser alvos. Churchill, em 1940, com um único discurso - o do “sangue, suor e lágrimas” - animou a Inglaterra a uma resistência heróica na IIª Guerra Mundial.

Ora, a nossa democracia, como todas as outras, na verdade, tem pés de barro porque está dependente, em excesso, da TV e das redes sociais, lugares onde viceja a mediocridade total. Se André Ventura e a sua trupe vierem a transformar São Bento num arraial de impropérios, ofensas, dislates, agradeça-se à televisão o péssimo serviço prestado nos últimos anos. Mas não se perca de vista que esta geração de políticos - filhos das jotas partidárias e da ideologia oca made in States - não quis e não soube dizer não a essa mesma ideologia oca. Se a TV vende, com as redes sociais, “A violência, o sexo, o sensacionalismo” receita segura, que deviam estes políticos fazer? Debater, de facto, a educação em Portugal e a falência das sucessivas reformas, responsáveis pela geração de estudantes ignaros e violentos, alienados e preguiçosos. Deveriam ter posto o dedo na ferida: que Portugal se construirá com esta geração do digital, os viciados nos casinos online e na pornografia? Deviam ter denunciado o absurdo de debates de 25 minutos, forma ínvia de evitar uma política de ideias e de ideais. Assim, não se falou da urgência de aumentar os salários já - e não até 2028! Não se falou da Saúde e de como resolver o problema do SNS, nem se falou sobre o preço das casas. Não se falou do papel de Portugal na Europa em tempo de guerra mundial, a desenhar-se no horizonte. Não se falou do papel das Forças Armadas no actual cenário internacional. Da avó de Mariana ao gosto pelos carros do Pedro Nuno, quem ganhou foi Ventura, o paupérrimo oportunista que, mais incisivo que outros, movido pela raiva e a ganância, faz do ataque a melhor defesa. Se o público acaba por se cansar da violência, da boçalidade, da mediocridade, basta aumentar a dose.”, diz Popper. É que a nossa democracia dá. Este facto explicará imensa coisa da nossa pobre realidade social, política e cultural.

Em 1989, compreendendo a degradação acelerada de valores da democracia, o Conselho das Comunidades Europeias emitiu uma directiva onde, explicitamente, considerava urgente proteger crianças e jovens dos conteúdos televisivos. Popper por três vezes tentou apresentar o seu projecto para que houvesse, da parte das televisões, uma responsabilidade quanto aos conteúdos que transmitem e o modo como transmitem. Já se sabe: a televisão tem como primeiro e último fim vender um só produto: a televisão. Mas, no meio da sangria do lucro, devemos ser corajosos e lúcidos e concordar com Popper: são eles, os produtores de TV, quem detêm o poder de censurar tudo à sua vontade sem que possa fazer-se seja o que for” (Popper, 1995:13). O resultado mais óbvio é que, sem freio algum, as democracias estão reféns desse 4º poder que, um dia, lá, no passado, quando o jornalismo foi jornalismo com isenção, até tinha jurado a independência e a defesa ao direito à informação. É que houve um tempo em que um moderador dum debate televisivo sabia o que era moderar um debate. Hoje percebe-se muito bem que estão ao serviço deste ou daquele interesse, deste ou daquele candidato. Não por acreditarem nas palavras e no projecto, mas porque, obedecendo à lógica das audiências, aquele candidato vende mais.

Tudo isto hoje, neste tempo tétrico de ascensão das bestas e da mediocridade a lugares de influência, explicará também os resultados das próximas eleições. Causa: a banalização do “directo”, a banalização do comentário político, a futebolização dos partidos, a sujeição dos políticos aos conselheiros de imagem. Tudo isto e a ausência de uma verdadeira cultura democrática - difícil no mundo em que tudo se compra e se vende, tudo é mercadoria e objecto de troca - trouxe-nos até aqui: 50 anos depois do 25 de Abril, é a agenda televisiva que tudo marca. Os outros poderes obedecem. Sobretudo o poder político. Essa obediência cega à televisão impede que os responsáveis políticos possam ser, de facto, autênticos. E impede, na verdade, que o exercício da política resolva os problemas concretos das pessoas. A minha geração de políticos, na verdade, repete até ao enjoo lugares-comuns. Procura assegurar votos fazendo demagogia.

De facto, sem qualquer poder retórico, sem conhecerem o país real, frequentando há tantos anos os corredores dos partidos e, depois, as salas e câmaras e corredores do Poder, não falam para nós, não estão a par do que vive o país real. Há muito que gizaram, em linha recta, a sua vida: das jotas para a universidade, da universidade para a TV, da TV para o poder. Popper tinha razão: na era da “humanidade sentada”, é a política-publicidade que vale e só vence o que vende. É pena que assim seja: a Argentina e o Brasil estão já aqui.


Professor, poeta e crítico literário

QOSHE - A ideologia oca: televisão e políticos (1ª parte) - António Carlos Cortez
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A ideologia oca: televisão e políticos (1ª parte)

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26.02.2024

Apropósito dos paupérrimos debates desta campanha e que os canais de televisão venderam como produto acabado da indigência a que chegámos, vale a pena lembrar um livrinho, hoje esquecido, e que a Gradiva publicou no já longínquo ano de 1995 (quando a geração dos actuais políticos - a minha, diga-se - andaria já nas respectivas jotas a fazer pela vida, sendo que alguns deles, em 95, nem dez anos teriam…). O livrinho é este: A Televisão: Um Perigo para a Democracia, de Karl Popper. “Ladra do tempo, criada infiel”, eis uma das muitas imagens a que o filósofo recorre para descrever a “Medusa do nosso tempo”, imagem de Vladimir Porche, que, em 1955, já adivinhava os nefastos efeitos da caixa mágica sobre a nova humanidade - a “humanidade sentada”.

Vale a pena lembrar este livro de Popper porque, exceptuando Paulo Raimundo, e, talvez, Rui Tavares, todos os outros candidatos, em maior ou menor grau, falaram não para os portugueses, mas para as televisões. Não admira: são os preferidos do sistema oco. A eles cabe dizer as frases-chave que serão os lugares-comum vendidos como sentenças inspiradas. Frases, sentenças, o mais das vezes pensadas por “directores de campanha”, ou “consultores de imagem” que, licenciados à bolonhesa em cursos de comunicação social, ascenderam ao patamar de “conselheiros” porque sim, por terem um “jeitinho” para as palavras e passam por criativos.

Ora, Paulo Raimundo e Rui Tavares - aquele, mais do que este - não sabem (ou não aceitam) ir na crista da onda da moda e, inconscientemente, saberão que os canais da TV vêem neles produtos pouco vendáveis. Os meios de comunicação de massas - o conglomerado TV/redes sociais - tudo determinam. Marcelo Rebelo de Sousa, por muitos mergulhos no Tejo que tenha dado, perdeu as eleições para a Câmara de Lisboa, em 1989, para Jorge Sampaio. Era ainda outro tempo. É sintomático da ideologia oca que trinta anos depois seja ele o Presidente-Selfie, um verdadeiro produto da televisão. Hoje as redes sociais formatam o discurso que vende e a TV imita-as. Por consequência, seguidos por milhares no TikTok, no “Insta” ou noutras plataformas, os mais novos encontram em Ventura o político que os agita e inspira. Elogiou-se, durante longo tempo, em Marcelo, a sua capacidade de........

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