Podia ser o título de uma extensa tese de doutoramento ou de um estudo profundo, em que se ouvissem milhares de especialistas para descobrir a fórmula mágica. Mas poupemos o trabalho, porque a questão não carece de investigação de grande envergadura: querem que as deixem em paz.

Querem que parem de questionar direitos consagrados, querem que não as façam sentir como seres de segunda (como outrora estava legislado), querem ser donas dos seus corpos sem os dedos do privilégio masculino agressivamente apontados para elas, querem escolher livremente o que fazer com as suas vidas sem a obrigação de obedecer a um regulamento de papéis de género que nenhuma delas assinou, mas que lhe foi imposto assim que foram identificadas como mulheres.

Definir a expectativa de percurso de vida com base na biologia é aberrante, é cruel, é fraco e ultrapassado do ponto de vista intelectual, social e humano. É seguir a lógica que permitiu a escravatura, que amarrou as mulheres às cozinhas e aos quartos para exercerem o seu “estatuto natural” de parideiras, cozinheiras, objetos sexuais, seres amorfos e vazios de capacidade para contribuir para a sociedade.

O que é que as pessoas do género feminino têm que as torne mais aptas para as tarefas domésticas ou menos aptas para o trabalho intelectual? Nada. O que é que os homens têm que os torne menos aptos para lavar uns pratos e mudar umas fraldas? Nada também. Então, o que é que prevalece na poeira dos dias e, volta e meia, nos assalta a atenção em forma de livro? Um sistema construído com base no poder de metade da população, em parte, à custa da outra metade - e o medo de que esse sistema se esteja a esgotar. Teme-se a “substituição”, porque não se sabe como seria o mundo de outra maneira, porque há clubes e códigos formados entre privilegiados e porque não se sabe como viver fora deles.

Ensinaram a geração das mulheres que têm hoje 30 a 40 anos a ser extremamente independentes e livres. Ensinaram-nos que podíamos ser tudo: além de esposa e mãe (os tais papéis que sempre nos foram agrafados), podíamos também estudar até ao último nível do Ensino Superior, ter uma carreira sólida, chegar a CEO, ser empreendedoras, viajar sozinhas, explorar a sexualidade livremente, morar sozinhas, expor o nosso corpo como exercício de empoderamento, levantarmo-nos na mesa de reuniões para fazermos valer a nossa opinião.

Acabou a era da dependência e da voz baixa para não incomodar, disseram-nos. E nós acreditámos. Mas falharam. Não ensinaram os homens à nossa volta a ser adultos funcionais no cuidado de uma casa, não treinaram os homens para o gosto pelo trabalho afetivo, não mostraram aos homens como o mundo é diferente para eles e para elas, não os estimularam a levantar-se pelas mulheres, não educaram os homens para viverem abertamente as suas emoções nem para falarem sobre os seus sentimentos, não lhe ensinaram que a dominação como característica masculina é uma farsa para alimentar a desigualdade e para também os prejudicar a nível mental e emocional, não os ensinaram a amar mulheres independentes.

E agora, como mostram as estatísticas recentes, temos mulheres cada vez mais progressistas e homens mais conservadores, que se alimentam de discursos reacionários até há uns anos socialmente condenáveis.

É chocante a ousadia com que um grupo de homens vem questionar publicamente questões como a “opressão das mulheres” historicamente retratada ou o “direito ao aborto”, instituído em Portugal há 17 anos. Haverá maior prova de que o privilégio masculino é real?

QOSHE - O que é que as mulheres querem? - Catarina Marques Rodrigues
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O que é que as mulheres querem?

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14.04.2024

Podia ser o título de uma extensa tese de doutoramento ou de um estudo profundo, em que se ouvissem milhares de especialistas para descobrir a fórmula mágica. Mas poupemos o trabalho, porque a questão não carece de investigação de grande envergadura: querem que as deixem em paz.

Querem que parem de questionar direitos consagrados, querem que não as façam sentir como seres de segunda (como outrora estava legislado), querem ser donas dos seus corpos sem os dedos do privilégio masculino agressivamente apontados para elas, querem escolher livremente o que fazer com as suas vidas sem a obrigação de obedecer a um regulamento de papéis de género que nenhuma delas assinou, mas que lhe foi imposto assim que foram identificadas como mulheres.

Definir a expectativa de percurso de vida com base na biologia é aberrante, é cruel, é fraco e ultrapassado do ponto de vista intelectual, social........

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