Quero começar por desejar a todos uma Santa e Feliz Páscoa! Deus a todos encha da sua bênção e da sua paz!

A palavra “páscoa” significa na sua etimologia “passagem”: recordava a passagem do Mar Vermelho pelo Povo de Israel, liberto da escravidão do Egito; celebra hoje para nós, cristãos, a passagem de Jesus Cristo da morte à vida, inaugurando uma forma totalmente nova de existir. Na vida de cada pessoa hoje, tem de continuar a fazer-se passagem, e muito necessária!

Por antiga instituição, a data da Páscoa é calculada a partir do equinócio da Primavera. Deste modo, é nesta época do ano, em que as plantas começam a mostrar os traços de uma vida nova, que celebramos a grande festa da renovação cristã. Importa que a Páscoa também tenha significado num sentido mais amplo, atingindo toda a sociedade: todos estamos necessitados de renovação, de redenção. E são muitas as situações que isso reclamam. É necessário que a Páscoa que brota do túmulo aberto de Cristo, que se espelha na natureza transbordante de vida, chegue ao coração de cada um e de cada uma dos nossos contemporâneos.

Antes de mais, não podemos viver esta Páscoa sem pensar no drama de tantos homens e mulheres na Ucrânia, na Terra Santa e em tantos lugares pelo mundo em que a violência e o ódio imperam. Viver a Páscoa faz-nos elevar uma prece pela paz no mundo, mas também uma transformação - poderíamos dizer passagem - do coração dos dirigentes políticos. A paz acontece no compromisso sério fundado na dignidade da pessoa humana. Quando celebramos a Páscoa é também esta dignidade que celebramos: para nós, cristãos, o ser humano tem uma dignidade inviolável, porque foi criado por Deus e destinado à bem-aventurança eterna no Céu, na comunhão com Deus. Na Páscoa contemplamos essa vocação da Humanidade e isso tem de nos conduzir a caminhos de paz. Estes nossos irmãos e irmãs que sofrem estão sedentos da Páscoa verdadeira, que redime e cura os corações.

Celebrar a Páscoa é também pensar nos dramas de tantos irmãos e irmãs portugueses que passam necessidades. A inflação, a desestruturação de serviços básicos e os problemas de habitação têm despejado muitas pessoas nas ruas ou em situações de pobreza. Isso testemunham as associações no terreno. Não podemos deixar de pensar na Páscoa destas pessoas, quando não são redimidas no mais básico e quando vemos que a nossa sociedade deixa de cuidar dos últimos, dos mais frágeis e dos mais fracos. Diz o profeta Isaías, e repete Jesus no Evangelho, que a sua missão é anunciar a Boa Nova aos pobres: façamos Páscoa e vivamos o compromisso de estar ao serviço dos outros e de ajudar a dignificar os que mais necessitam.

Mas viver a Páscoa é, sobretudo, uma experiência eclesial. Tenho a alegria de viver esta Páscoa como a primeira como Patriarca de Lisboa. Também a nossa Igreja de Lisboa é chamada a fazer passagem: do medo e da vergonha de se assumir cristão, temos de viver a coragem e a frontalidade de testemunhar a nossa fé em Deus no meio do mundo. Fazer Páscoa é também escancarar as portas das nossas igrejas e dos nossos corações para acolher todos, todos, todos, como nos desafiou o Papa Francisco em agosto de 2023 na Jornada Mundial da Juventude. Recordando a JMJ, gostaria de recordar aquelas palavras que disse na homilia de início de ministério patriarcal, nos Jerónimos: “Morreu a vergonha de se ser Igreja, de viver enclausurado no medo de aparecer e de testemunhar a esperança que nos move. Sim, é verdade, morreu a cultura do temor e ressurgiu uma Igreja de rosto erguido, sem medo de testemunhar que é na fé em Cristo que bebemos a fonte da nossa alegria e da nossa prontidão a servir; que é Ele que nos mobiliza a sair das inúmeras zonas de conforto para dar a cara pelas causas e pelo mesmo Cristo.” Esta passagem da morte à vida aconteceu e está a acontecer e era essencial que acontecesse agora mais que nunca.

Na Páscoa, há duas palavras essenciais, que são mais que palavras, têm de ser luz no coração de nós todos: esperança e alegria. Páscoa é esperança porque a morte deixa de ser a última palavra. Numa sociedade em que tantas vezes se escolhe o caminho fácil e rápido da morte, da autodestruição, do isolamento, os cristãos respondem com a esperança. A nossa religião podia justamente ser chamada “religião da nova oportunidade”: não há nada quebrado que não tenha conserto, não há pecador mais empedernido que não se possa tornar um grande santo. É preciso recuperar a esperança porque esta abre o nosso coração ao horizonte de Deus.

Segundo se conta, o conhecido compositor Ludwig van Beethoven, diante do avanço da surdez e sentindo-se incapaz e inútil, isolava-se cada vez mais e chegou mesmo a pensar no suicídio. Afundado em todos estes pensamentos, dialoga com uma jovem cega que lhe diz que daria tudo para ver uma noite de luar. Beethoven recobrou o ânimo, voltou a compor. Aquele grito daquela jovem abriu o seu coração à esperança, que passava por uma nova forma de considerar o mundo.

A segunda palavra: alegria. Beethoven, anos mais tarde daquele encontro, compõe a 9.ª Sinfonia, conhecida como Hino à alegria, com a qual expressa a sua gratidão por ter recuperado sentido para a vida. Também nós, hoje, precisamos recuperar o sentido da vida a partir do que é simples, mas que é capaz de dar valor à nossa existência. Este é o testemunho que os cristãos são chamados a dar hoje. A União Europeia escolheu como hino precisamente um dos andamentos da 9.ª Sinfonia: é significativo que uma sociedade que por vezes parece que perdeu o horizonte, que se fechou e que caminha para o suicídio, tenha como símbolo o convite à alegria. Esta nasce da Páscoa, porque abre um horizonte novo. Este horizonte que o mundo procura e que Deus quer que apontemos a toda a Humanidade. Façamos Páscoa, sejamos Páscoa, vivamos a Páscoa da esperança e da alegria.

QOSHE - Celebrar a Páscoa é também celebrar a dignidade inviolável do ser humano - D. Rui Valério
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Celebrar a Páscoa é também celebrar a dignidade inviolável do ser humano

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31.03.2024

Quero começar por desejar a todos uma Santa e Feliz Páscoa! Deus a todos encha da sua bênção e da sua paz!

A palavra “páscoa” significa na sua etimologia “passagem”: recordava a passagem do Mar Vermelho pelo Povo de Israel, liberto da escravidão do Egito; celebra hoje para nós, cristãos, a passagem de Jesus Cristo da morte à vida, inaugurando uma forma totalmente nova de existir. Na vida de cada pessoa hoje, tem de continuar a fazer-se passagem, e muito necessária!

Por antiga instituição, a data da Páscoa é calculada a partir do equinócio da Primavera. Deste modo, é nesta época do ano, em que as plantas começam a mostrar os traços de uma vida nova, que celebramos a grande festa da renovação cristã. Importa que a Páscoa também tenha significado num sentido mais amplo, atingindo toda a sociedade: todos estamos necessitados de renovação, de redenção. E são muitas as situações que isso reclamam. É necessário que a Páscoa que brota do túmulo aberto de Cristo, que se espelha na natureza transbordante de vida, chegue ao coração de cada um e de cada uma dos nossos contemporâneos.

Antes de mais, não podemos viver esta Páscoa sem pensar no drama de tantos homens e mulheres na Ucrânia, na Terra Santa e em tantos lugares pelo mundo em que a violência e o ódio imperam. Viver a Páscoa faz-nos elevar uma prece pela paz no mundo, mas também uma transformação - poderíamos dizer passagem - do coração dos dirigentes políticos. A........

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