1. – Onde é que estava no dia em que António Costa se demitiu? A pergunta passa a fazer parte do index sobre alguns dos grandes momentos dos primeiros 50 anos do 25 de Abril.

Nessa manhã, à medida que chegavam os alertas, num cavalgar incessante de tensão, ficava a sensação de se ter entrado numa nova vertigem do tempo – caótico e intraduzível para linguagem.

Até que.

No mundo do 5G e das app de televisão, as coisas acontecem nos telemóveis. Já lá iam as duas da tarde. Costa falou e disse. Kaput.

E assim se finou o poder do otimista irritante.

Às mãos de... um parágrafo – uma interpretação, um je ne sais quoi.

Portugal era então notícia em todo o mundo pelas piores razões. O primeiro-ministro demite-se por suspeitas de corrupção. Corrupção tipo Netanyahu? Corrupção tipo Sarkozy? Que corrupção? Nenhum modelo conhecido.

Patente portuguesa. Uma escuta em forma de assim.

Enquanto decorria o filme de 7 de Novembro, pairavam no ar os mil e um sinais presidenciais.

Expresso: 14 de Outubro de 2022: “Não pensem que me vou fechar no Palácio”. 6 de Janeiro 2023: “Marcelo dá um ano a Costa para salvar legislatura”. 5 de Abril 2023: “Marcelo recusa visitar mais obras PRR com Costa”.

A 7 de Novembro de 2023 o Palácio de Gotham triunfa.

António Cruise, encurralado, cai para o precipício e vemo-lo a voar desfiladeiro abaixo.

Em Gotham, um rumor é um indício, um indício é a presunção de um crime, a presunção de um crime é inequivocamente um crime.

O povo constata o óbito: depois da Missão Impossível - Geringonça I e II, António Cruise sai de cena.

Mas. Enquanto cai em direção ao abismo, um ramo da árvore da Justiça apanha-o pelo casaco durante a queda. E ali fica a bambolear. Cai? Não cai? Cai?

Esfíngico, o Presidente ressurge das trevas e anuncia em primeira mão a todos a feliz sobrevivência de António Cruise. “Começa a ser mais provável haver um português no Conselho Europeu”.

Pequeno problema: como explicar tudo isto à Europa? Imagine-se uma notícia tipo BBC World. “O ex-primeiro ministro de Portugal foi hoje ilibado de uma acusação de corrupção e é agora candidato ao cargo de presidente do Conselho Europeu. O seu nome havia sido escutado numa conversa entre duas pessoas que pretendem construir um data center, mas o antigo primeiro-ministro não participou na conversa nem em qualquer ato ilegal”.

Espremido, ninguém compreende. Só ficam as palavras – acusado-corrupção-ilegal. É absolutamente terrível o poder dos julgamentos na praça pública embora a política seja a arte maior dessa sobrevivência. Eis-nos perante a Missão Impossível III: Conselho em Bruxelas.

2. Parece impossível encontrar 1500 milhões prometidos para descer mais o IRS, apesar de estarem mesmo ao lado 1500 milhões para o IRC... Está escrito na pedra que o IRC tem de descer? Quem escreveu?

Como sabemos, o Governo governa, mas só manda no que pode. E em matéria de impostos, tudo tem de ir ao Parlamento. A pergunta então é esta: porque não há uma aliança na oposição para chumbar os 1500 milhões do IRC e transferi-los para o IRS?

Na verdade, como todos sabemos, o choque de competitividade que o IRC iria produzir, traduzir-se-ia em algo muito difuso: maior remuneração para sócios e acionistas, boa parte deles de fora de Portugal. Ao contrário, um duplo choque no IRS talvez deixasse os portugueses a respirar melhor neste crítico momento. A subida dos juros e da inflação destruiu imensas poupanças de quem tem de pagar o custo da casa. Ora, feitas as contas, e embuste por embuste, que ganhe o IRS.


Jornalista

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O Palácio de Gotham. O embuste do IRC

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21.04.2024

1. – Onde é que estava no dia em que António Costa se demitiu? A pergunta passa a fazer parte do index sobre alguns dos grandes momentos dos primeiros 50 anos do 25 de Abril.

Nessa manhã, à medida que chegavam os alertas, num cavalgar incessante de tensão, ficava a sensação de se ter entrado numa nova vertigem do tempo – caótico e intraduzível para linguagem.

Até que.

No mundo do 5G e das app de televisão, as coisas acontecem nos telemóveis. Já lá iam as duas da tarde. Costa falou e disse. Kaput.

E assim se finou o poder do otimista irritante.

Às mãos de... um parágrafo – uma interpretação, um je ne sais quoi.

Portugal era então notícia em todo o mundo pelas piores razões. O primeiro-ministro demite-se por suspeitas de corrupção. Corrupção tipo Netanyahu? Corrupção tipo Sarkozy? Que corrupção? Nenhum modelo conhecido.

Patente portuguesa. Uma........

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