A notícia é à partida positiva: a maioria esmagadora (73%) dos jovens entre os 16 e os 34 consideram que o 25 de Abril, ou seja o fim da ditadura, teve “mais consequências positivas que negativas”. Foi isso mesmo que o Público puxou para o título da peça desta segunda-feira sobre os primeiros resultados de uma investigação/inquérito do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP) acerca da forma como os portugueses veem os últimos 50 anos: “É entre os jovens que o legado do 25 de Abril é mais valorizado”.

Uma bela surpresa, decerto, quando ainda se está a digerir - eu decerto estou - a evidência de que a extrema-direita atraiu nas legislativas uma parte do voto jovem. Mas, à medida que se lê o referido texto do Público, a alegria com a boa notícia vai esmorecendo: quase um quarto dos entrevistados (aqui de todas as idades) acha que o 25 de Abril teve “consequências tão positivas como negativas”. E entre os jovens com apenas o ensino básico quase metade (48%) crê que a igualdade social piorou nos últimos 50 anos, enquanto para aqueles com o ensino secundário aquilo que mais piorou foi a corrupção.

É aliás a corrupção que tanto a população geral (65%) como os jovens (quase 50%) consideram mais ter piorado desde o 25 de Abril - terá sido então uma das “consequências negativas” da democracia.

Não há informação no artigo sobre os fundamentos apontados pelos inquiridos para considerarem que a igualdade social diminuiu nos últimos 50 anos - adoraria conhecê-los, e espero que a investigação o permita, já que os factos obviamente contradizem essa perceção -, mas não é difícil perceber por que motivo uma tão grande parte das pessoas acha que a corrupção piorou com a democracia: é que antes de existir democracia não havia notícias sobre corrupção. Como não havia, em geral, notícias sobre crimes e muito menos os cometidos por funcionários do Estado ou políticos - a Censura certificava-se disso.

Não é, note-se, que a tipificação de alguns dos crimes que hoje englobamos sob esse “chapéu” não existisse; aliás que esses crimes eram praticados desde tempos imemoriais atestam-nos quer o Direito romano, que crismava o tráfico de influências como “venda de fumo” (receber dinheiro para alegadamente influenciar as decisões políticas), quer a legislação portuguesa do século XVI - as Ordenações Manuelinas -, que punia “o concerto para despachar negócios junto da Corte”, assim como “a compra e venda de desembargos”. E o Código Penal de 1886, que vigorou durante todo o Estado Novo, incluía por exemplo o crime de “suborno indireto” (artigo 322º), o qual ocorria quando um “empregado público” aceitasse "por si ou por outrem oferecimento ou promessa”, ou recebesse “dádivas” ou “presente” de quem “perante ele” requeresse desembargo ou despacho ou tivesse “um negócio ou pretensão dependente do exercício das suas funções públicas”.

Sucede que no Estado Novo, como se assevera no artigo Práticas de Corrupção na Sociedade Portuguesa Contemporânea (Revista Polícia e Justiça, 1992), as dádivas e presentes aos funcionários dos serviços públicos eram tidas como perfeitamente naturais e comuns; essas práticas estavam “enraizadas e socialmente legitimadas”, sendo "a sua ocorrência aceite por toda a sociedade".

Posso confirmar: sim, constituia prática tão normal oferecer presentes aos funcionários das finanças, dos registos notariais, médicos, etc, que até a criança que eu era (tinha 10 anos quando o regime caiu) se deu conta de que tal sucedia. Por exemplo, tinha um tio médico que no Natal não sabia o que fazer a tanto peru (ainda por cima vivo), bolo-rei, etc, e ouvi muitas vezes falar das “atenções” de que era necessário cumular os funcionários de certas repartições públicas para, por exemplo, marcar uma escritura ou tratar de outro assunto qualquer. E se assim era ao nível dos que atendiam ao balcão, não é difícil imaginar como se funcionava em mais altas esferas.

Assim, se algo o regime democrático trouxe em relação à corrupção, ainda que primeiro timidamente e depois de forma mais sistemática e eficaz, foi não só a respetiva identificação como atividade proibida e prejudicial ao bem comum como a sua cada vez mais frequente perseguição penal, com a correspondente publicidade mediática (e portanto um aumento da preocupação com o fenómeno).

Que desse facto se retire que a corrupção é um fenómeno típico da democracia e que a sua incidência “piorou muito” graças a esse regime faz tanto sentido como afirmar que o crime de violência doméstica é hoje muito mais prevalente que há 60 anos, quando nem sequer existia no Código Penal (o qual, recorde-se, punia com seis meses de exílio da comarca o marido que matasse a mulher adúltera) e práticas que hoje fazem parte do tipo, como ler a correspondência do cônjuge ou obrigá-lo a residir na "casa de família" caso “fuja”, eram garantidas no Código Civil como direito dos “chefes de família” masculinos sobre as respetivas mulheres.

A mesma lógica se aplica a uma área como a da Saúde: o progresso extraordinário em termos de esperança média de vida - em 1974 seria de 68 anos, em 2023 chegou aos 84,75 - implica que a pressão sobre o Sistema Nacional de Saúde é cada vez maior, por existirem muito mais idosos e doentes crónicos a necessitar de cuidados especializados, com o correspondente aumento exponencial de investimento em tratamentos e pessoal. Aliás, esse é um aspeto em comum nas democracias avançadas e com sistemas de saúde públicos de acesso universal: o sucesso desses sistemas alimenta a “sensação” do seu falhanço. Não só pelos motivos referidos, mas igualmente por uma maior exigência de qualidade por parte das populações, também ela, pelo empoderamento que implica, um resultado da democracia.

Criticar e exigir melhor, noticiar o que está mal e lutar para que fique bem é algo que só existe nos regimes democráticos - aqueles em que não se vai preso nem se desaparece por protestar e ser uma voz incómoda. O resultado da investigação do ISCSP diz-nos, paradoxalmente, que vivemos há tempo suficiente em democracia para haver quem já nem valorize esse facto, e não consiga sequer reconhecer que o país melhorou muitíssimo em todos os indicadores de bem-estar e de organização social. E que o caminho terá de ser sempre mais democracia, jamais menos. Nas autocracias não se vive melhor - só se sabe e critica muito menos.

QOSHE - A democracia e a sua pior inimiga - a democracia - Fernanda Câncio
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A democracia e a sua pior inimiga - a democracia

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26.03.2024

A notícia é à partida positiva: a maioria esmagadora (73%) dos jovens entre os 16 e os 34 consideram que o 25 de Abril, ou seja o fim da ditadura, teve “mais consequências positivas que negativas”. Foi isso mesmo que o Público puxou para o título da peça desta segunda-feira sobre os primeiros resultados de uma investigação/inquérito do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP) acerca da forma como os portugueses veem os últimos 50 anos: “É entre os jovens que o legado do 25 de Abril é mais valorizado”.

Uma bela surpresa, decerto, quando ainda se está a digerir - eu decerto estou - a evidência de que a extrema-direita atraiu nas legislativas uma parte do voto jovem. Mas, à medida que se lê o referido texto do Público, a alegria com a boa notícia vai esmorecendo: quase um quarto dos entrevistados (aqui de todas as idades) acha que o 25 de Abril teve “consequências tão positivas como negativas”. E entre os jovens com apenas o ensino básico quase metade (48%) crê que a igualdade social piorou nos últimos 50 anos, enquanto para aqueles com o ensino secundário aquilo que mais piorou foi a corrupção.

É aliás a corrupção que tanto a população geral (65%) como os jovens (quase 50%) consideram mais ter piorado desde o 25 de Abril - terá sido então uma das “consequências negativas” da democracia.

Não há informação no artigo sobre os fundamentos apontados pelos inquiridos para considerarem que a igualdade social diminuiu nos últimos 50 anos - adoraria conhecê-los, e espero que a investigação o permita, já que os........

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