"Associação dos Indignados e Enganados do Papel Comercial". É um belo nome, o de uma das várias associações que foram criadas para exigir a devolução das poupanças/investimentos de quem se declarava enganado pelo Banco Espírito Santo.

Indignados e enganados aos quais quer o governo de António Costa quer o Presidente da República reconheceram o direito a reaverem o que era seu. Em 2016, aliás, o primeiro-ministro, perante emigrantes portugueses em França que reclamavam o seu dinheiro, falava em "justiça": "Perante o quadro de um banco que faliu, mas antes enganou milhares de portugueses, não podemos virar a cara e temos de fazer justiça à justiça que é devida."

Cumpriria a sua promessa: no ano seguinte, numa reunião do governo com a administração do Novo Banco (o banco alegadamente "bom" que em 2014 resultou da resolução do BES) e com representantes dos emigrantes lesados, anunciava-se uma solução que permitia aos últimos, caso desistissem dos processos judiciais, recuperar 75% das poupanças nos três anos seguintes. Esse dinheiro não vinha diretamente dos bolsos do Estado, mas, sendo o Estado o então dono do banco, foi o Estado a decidir indemnizar (e a pagar as indemnizações, já que como é sabido injetor milhares de milhões no banco).

Por coincidência e na mesmíssima altura, o mesmo governo e o mesmo primeiro-ministro decidiam congelar as poupanças de outro grupo muito menos vocal mas muito mais numeroso, que nunca vimos manifestar-se nem organizar-se em associações de espoliados ou pedir audiências em Belém.

Em relação a esse grupo de aforradores e às suas perdas num investimento que se revelou comprovadamente enganoso nunca demos por preocupação por parte de António Costa e do Presidente da República nem, tão-pouco, da maioria dos partidos. Na verdade, é como se esses aforradores não existissem ou, pior, merecessem todas as aleivosias que lhes são infligidas.

Falo do contingente de proprietários de habitações com contratos de arrendamento anteriores a 1990, aos quais foi progressivamente prometido, desde 2006, que poderiam reaver o seu rendimento, para em fevereiro de 2023 ser anunciado, no pacote Mais Habitação, que as rendas congeladas, cujo descongelamento estava (depois de quatro prorrogações, em 2012, 2016 e 2022) previsto para este ano, ficariam para sempre congeladas.

Com este congelamento definitivo veio mais uma promessa - como as outras, para ser violada: a de que iria existir uma compensação a estes proprietários, e que esta seria devida a partir de 2024.

O "mas" veio logo a seguir: tal compensação só poderia ser decidida com base num estudo. Que era para estar pronto em março mas apareceu afinal no fim de novembro.

Tal estudo tem algum interesse, ao permitir pela primeira vez caracterizar o universo destes proprietários: são na maioria (51,8%) idosos com mais de 70 anos que têm até dois contratos de arrendamento, recebendo uma média de 166 euros por contrato. Uma percentagem de 6,3% apresenta rendimentos muito baixos, até 623 euros mensais; outros 6,9% auferem entre esse valor e 940 euros. Quase um quarto (22,3%) tem rendimentos até 1332 euros mensais. Ou seja, há entre estes proprietários pessoas a viver com grandes dificuldades, que talvez tenham de recorrer ao apoio do Estado - o mesmo Estado que os impede de aumentar as rendas.

Porém, de acordo com o mesmo estudo, compensar estes proprietários pelas suas perdas face aos preços de mercado - a diferença entre a renda que o Estado lhes permite receber e aquela que poderiam cobrar caso lhes fosse dada liberdade para a determinarem - custaria mais de 600 milhões de euros anuais.

Esta quantia astronómica, que fez títulos de todas as notícias sobre o estudo - como quem diz "não pode ser, era o que faltava" - quer na verdade dizer o contrário do que se diz: essas são as centenas de milhões que se estima que estes proprietários perdem anualmente.

Essa conclusão, que parece ter deixado a maioria, a começar pela da opinião publicada, imperturbável, tem porém um problema - foi retirada para o estimado universo de 124 mil contratos de arrendamento habitacionais anteriores a 1990 que dizem respeito a senhorios privados, mas baseada nos dados de menos de nove mil, aqueles em relação aos quais os respetivos inquilinos (22 mil) apresentaram certificação de "carência económica".

Ficámos assim a saber esta coisa interessantíssima: desse estimado universo de 124 mil contratos só em menos de 20% os inquilinos se deram ao trabalho de demonstrar que não têm um rendimento superior a cinco ordenados mínimos mensais - sim, leu bem, carência económica é determinada legalmente neste caso, e apenas neste caso (onde já se viu ser carente com cinco ordenados mínimos mensais?), como correspondendo a um rendimento mensal até 3800 euros (ou 4100 euros já em 2024, quando o ordenado mínimo aumenta para 820 euros).

Apesar de se saber que só com a dita certificação a renda pode, como previsto na lei, ser fixada com base no rendimento declarado - variando entre 10%, se o mesmo não for superior a 500 euros, e subindo, em vários escalões, até 25% (percentagem que se aplica quando o rendimento esteja entre 1500 e os tais cinco ordenados mínimos mensais) -, o estudo não apresenta qualquer tentativa de explicação para o facto de apenas 22 mil inquilinos a terem apresentado.

Mas sabe-se que a renda anual nunca pode, nestes contratos, ser superior a 1/15 do valor patrimonial do imóvel (VPT, ou o valor atribuído pelas Finanças ao imóvel, aquele sobre o qual é calculado o IMI; por exemplo, para um VPT de 50 mil euros a renda máxima será 277 euros). O que nos leva a concluir, no caso dos inquilinos que até hoje não apresentaram certificado da tal carência, que das duas uma: ou os proprietários em causa nunca tentaram, desde que tal lhes foi possível (a partir de 2006, quando se permitiu um "descongelamento" parcial e gradual destas rendas), efetuar qualquer aumento, ou cobram já uma renda no limite da que podem cobrar - os tais 1/15 do VPT.

Será muito provavelmente esta última hipótese a verdadeira, uma vez que em imóveis mais antigos, como é o caso daqueles que têm contratos de arrendamento com pelo menos 33 anos, o VPT é em regra bastante mais baixo que o "valor de mercado". Isso mesmo aliás se conclui do estudo: este, ao calcular quanto gastaria o Estado numa compensação para estes proprietários que se baseasse nos tais 1/15 do VPT, estima-a em cerca de 2,2 milhões mensais. Isto porque na maior parte desses contratos o Estado não pagaria um cêntimo.

Vale aliás a pena dividir esses estimados 2,2 milhões pelos 124 mil contratos referidos no estudo como constituindo o universo das rendas congeladas: dá a extraordinária "compensação" de 17,74 euros mensais.

Tendo em conta o historial de desprezo pelos direitos destes proprietários, não era preciso ter dons divinatórios para antecipar que a opção do governo seria a de optar por uma "compensação" que nada compensa.

Assim foi, diz o comunicado do último Conselho de Ministros. Curiosamente, e apesar da evidência do contrário, o que continua a ser noticiado é que "o governo decidiu compensar os senhorios das rendas congeladas". E, o que é particularmente cruel, que até lhes permite, pela primeira vez em décadas, aumentar a renda no coeficiente da inflação.

Ora, como é fácil de perceber para quem pense um segundo, saiba usar uma calculadora e não se limite a repetir o que está em press releases, caso o Estado tenha realmente de pagar uma compensação - como e quando, se alguma vez, está por se saber, porque o decreto aprovado ainda não foi (porquê o governo não diz) tornado público -, o valor de tal aumento com base na inflação será descontado nessa mesma compensação. Isto porque, obviamente, se esta constitui a diferença entre o que o inquilino paga e 1/15 do VPT, se o inquilino paga mais, o Estado paga menos. Posto de outra forma, quem ganhará com o aumento da renda, se aplicado pelo senhorio, será o Estado.

Difícil encontrar neste país um grupo de cidadãos mais enganados e espoliados que estes proprietários obrigados pelo Estado a assumir o seu papel de provedor de habitação social, e menos sensibilidade humana e política para a injustiça, certificada inúmeras vezes em decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (e também, imagine-se, por um ministro da Administração Interna chamado António Costa, que a 20 de outubro de 2006 dizia no parlamento: "Da parte do senhorio, é evidente que tem de se pôr fim a este ciclo, em que o Estado legou aos senhorios o custo social da proteção da renda"), de que são vítimas. Antes tivessem, em vez de investir em habitação, metido o dinheiro a render no BES - haveria bem mais gente a apiedar-se deles.

QOSHE - Antes investisses no BES - Fernanda Câncio
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Antes investisses no BES

5 0
05.12.2023

"Associação dos Indignados e Enganados do Papel Comercial". É um belo nome, o de uma das várias associações que foram criadas para exigir a devolução das poupanças/investimentos de quem se declarava enganado pelo Banco Espírito Santo.

Indignados e enganados aos quais quer o governo de António Costa quer o Presidente da República reconheceram o direito a reaverem o que era seu. Em 2016, aliás, o primeiro-ministro, perante emigrantes portugueses em França que reclamavam o seu dinheiro, falava em "justiça": "Perante o quadro de um banco que faliu, mas antes enganou milhares de portugueses, não podemos virar a cara e temos de fazer justiça à justiça que é devida."

Cumpriria a sua promessa: no ano seguinte, numa reunião do governo com a administração do Novo Banco (o banco alegadamente "bom" que em 2014 resultou da resolução do BES) e com representantes dos emigrantes lesados, anunciava-se uma solução que permitia aos últimos, caso desistissem dos processos judiciais, recuperar 75% das poupanças nos três anos seguintes. Esse dinheiro não vinha diretamente dos bolsos do Estado, mas, sendo o Estado o então dono do banco, foi o Estado a decidir indemnizar (e a pagar as indemnizações, já que como é sabido injetor milhares de milhões no banco).

Por coincidência e na mesmíssima altura, o mesmo governo e o mesmo primeiro-ministro decidiam congelar as poupanças de outro grupo muito menos vocal mas muito mais numeroso, que nunca vimos manifestar-se nem organizar-se em associações de espoliados ou pedir audiências em Belém.

Em relação a esse grupo de aforradores e às suas perdas num investimento que se revelou comprovadamente enganoso nunca demos por preocupação por parte de António Costa e do Presidente da República nem, tão-pouco, da maioria dos partidos. Na verdade, é como se esses aforradores não existissem ou, pior, merecessem todas as aleivosias que lhes são infligidas.

Falo do contingente de proprietários de habitações com contratos de arrendamento anteriores a 1990, aos quais foi progressivamente prometido, desde 2006, que poderiam reaver o seu rendimento, para em fevereiro de 2023 ser anunciado, no pacote Mais Habitação, que as........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play