“O que me constrangeu mais foi ir ao mercado no sábado e a D. Alzira, da charcutaria, me perguntar como estava a situação no DN, que tinha visto na TV. Depois aconteceu parecido no restaurante onde costumo ir.”

Quem fala é uma das jornalistas do DN, mais de três décadas de profissão, que como toda a redação do jornal - este jornal de 159 anos celebrados a 29 de dezembro -, entrou em 2024 sem subsídio de Natal e sem vencimento. Embaraça-a, confessa, “este rótulo de pessoa com salário em atraso. Sei que muitos trabalhadores também já passaram por isso, mas trabalho para dar essas notícias. Não para ser notícia assim.” De resto, conclui, “estamos a esticar o salário do meu marido.”

Há quem não tenha salário de mais ninguém para esticar nem, por motivos que não vêm ao caso, poupanças arrecadadas para compensar o incumprimento da entidade patronal. Como esta outra jornalista que nunca se tinha visto na situação de ter de pedir ajuda à família: “Teve de ser uma sobrinha a emprestar-me dinheiro para pagar a renda. Tenho a minha conta negativa e 20 euros no bolso. Estou a comer o que tenho no congelador. É um mês complicado porque caem muitas despesas: seguros, imposto do carro… Geralmente cubro isso com o subsídio de Natal.”

Mas não houve subsídio de Natal, anunciado pela administração do Global Media Group, proprietário do DN - e cuja cara atual é o ex-jornalista e até há pouco detentor do semanário Tal & Qual, assim como de uma empresa de marketing político, José Paulo Fafe - como devendo ser pago em duodécimos ao longo de 2024 (ilegalidade pela qual foi já apresentada queixa à Autoridade das Condições de Trabalho). Nem, até agora, salário de dezembro. Para ninguém no DN, para ninguém no Dinheiro Vivo, com quem partilhamos o mesmo espaço da redação, para ninguém da TSF, que está ali do outro lado, no mesmo piso. Para ninguém no Jornal de Notícias.

Ainda em outubro, quando os novos administradores, presididos pelo já mencionado José Paulo Fafe e representando o novo acionista maioritário do GMG, um fundo financeiro internacional sediado nas Bahamas intitulado “World Opportunity Fund” e do qual nada se sabe (perguntámos aos administradores e ficámos na mesma), falaram com a redação, garantiram-nos que vinham para investir e não para “cortar nas pessoas”.

Isso, respondemos, é o que todos dizem, e depois o que sucede é sempre o mesmo. Temos três despedimentos coletivos - em 2009, 2014 e 2020 - para o provar. Meu dito, meu feito: um mês e pouco depois já nos estavam a pagar o salário de novembro com atraso e a informar de que não havia dinheiro para subsídio de Natal; no início de dezembro, anunciavam que para evitar “a previsível falência do grupo” tinham de rescindir com 150 a 200 trabalhadores; a meio de dezembro, os que colaboram a recibos verdes com os títulos do GMG não receberam o pagamento correspondente a outubro; no final de dezembro os trabalhadores efetivos ficaram sem salário.

E aqui estamos, a pagar para trabalhar. “Vi o meu pai passar por isto. Teve salários em atraso e andou a gastar as economias para ir trabalhar sem lhe pagarem - e no fim não lhe pagaram mesmo. Prometi a mim mesmo que nunca cairia nisso”, confessa mais outro jornalista do DN.

Caiu, caímos. “Estou a ir às reservas, que não são muitas e estão-se a esgotar já que vivi a vida toda em registo de chapa-ganha-chapa-gasta”, diz outro veterano do DN. “Tenho tido a alegria de estar a receber inúmeras mensagens de vários amigos e amigas a disponibilizarem-se para ajudar.”

Aguentar até quando? “Em dezembro participei numa vídeo-chamada com outros camaradas apenas para chorar e partilhar frustrações”, conta uma jornalista do Dinheiro Vivo. “Adensa-se a pressão emocional, rasga-se o peito todos os dias dos que têm de famílias para sustentar e torna-se palpável o medo de vermos desaparecer diante de nós alguns dos títulos mais importantes do jornalismo português. Estamos em estado de sítio”.

Estamos. Ainda assim, num apelo para toda a redação - digam-me como estão a lidar com isto, em privado, sem nomes -, a maioria cala. A maioria de nós que tanto insiste em caras e nomes a cada notícia, a cada reportagem, esconde-se aqui como se fosse vergonha não receber, como se fosse vergonha estarmos na situação de tantos que já ouvimos, entrevistámos, em cujas casas e tragédias entrámos. Como se sermos jornalistas nos devesse colocar de fora do interesse jornalístico, do interesse público, do olhar, dos ouvidos, da empatia dos outros; como se não nos doesse, como se não sangrássemos, como se não comêssemos nem pagássemos rendas, prestações, escolas, passes.

Como se não fôssemos trabalhadores como os outros, exatamente como os outros. Tão frágeis e tão dispensáveis como os outros - ou mais ainda, num tempo em que o jornalismo é uma profissão cada vez menos valorizada, um ofício cada vez mais desprezado.

Como se, e esse é outro ponto, em tudo o que nos diz respeito, incluindo a propriedade e a gestão dos meios de comunicação, dos títulos em que trabalhamos, fosse melhor não mexer, não perguntar, não escrutinar.

Nunca percebi isso. Por que motivo os jornalistas dizem “não somos notícia”. Somos tão notícia como todos os outros, caso haja notícia no que somos ou no que estamos a passar. Nunca entendi por que é que os jornalistas acham que não devem escrever, reportar, sobre jornalismo e jornalistas. E nunca percebi por que motivo os jornais, como as rádios e as TV, quando têm problemas, sejam eles quais forem - deontológicos, laborais, económicos, o que seja, se inibem, evitam, fogem de falar deles.

Falemos deles. Falemos de nós. Falemos do jornalismo e dos jornais, das rádios, das TV, exijamos transparência e responsabilidades, gritemos a nossa fúria. Temos direito a ela, temos o dever dela. É isso também ser jornalista: não desistir, ir até ao fim. Da história e da luta. Do jornalismo.

(Amanhã, 10 de janeiro, o DN está em greve e eu com o DN).

fernandacanciodn@gmail.com

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Crónica de uma jornalista sem salário

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09.01.2024

“O que me constrangeu mais foi ir ao mercado no sábado e a D. Alzira, da charcutaria, me perguntar como estava a situação no DN, que tinha visto na TV. Depois aconteceu parecido no restaurante onde costumo ir.”

Quem fala é uma das jornalistas do DN, mais de três décadas de profissão, que como toda a redação do jornal - este jornal de 159 anos celebrados a 29 de dezembro -, entrou em 2024 sem subsídio de Natal e sem vencimento. Embaraça-a, confessa, “este rótulo de pessoa com salário em atraso. Sei que muitos trabalhadores também já passaram por isso, mas trabalho para dar essas notícias. Não para ser notícia assim.” De resto, conclui, “estamos a esticar o salário do meu marido.”

Há quem não tenha salário de mais ninguém para esticar nem, por motivos que não vêm ao caso, poupanças arrecadadas para compensar o incumprimento da entidade patronal. Como esta outra jornalista que nunca se tinha visto na situação de ter de pedir ajuda à família: “Teve de ser uma sobrinha a emprestar-me dinheiro para pagar a renda. Tenho a minha conta negativa e 20 euros no bolso. Estou a comer o que tenho no congelador. É um mês complicado porque caem muitas despesas: seguros, imposto do carro… Geralmente cubro isso com o subsídio de Natal.”

Mas não houve subsídio de Natal, anunciado pela administração do Global Media Group, proprietário do DN - e cuja cara atual é o ex-jornalista e até há pouco detentor do semanário Tal & Qual, assim como de uma empresa de marketing........

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