Quando li que entre as transcrições de escutas da Operação Influencer tinham sido detetados vários erros, confesso não ter achado surpreendente. E há um motivo específico para tal que não apenas o de errar ser completamente humano; é que já tive o grato prazer de ler transcrições de escutas telefónicas nas quais fui, como se costuma ler na imprensa da especialidade, "apanhada" (todo um programa nesta palavra) - querendo dizer que fui escutada "fortuitamente" quando liguei para números de telefone que estavam sob escuta por parte da justiça.

Há poucas coisas mais estranhas que ler a interpretação que alguém faz de conversas ou de mensagens telefónicas que trocámos com outras pessoas. E digo interpretação porque, numa primeira fase dos processos, aquilo que está nas transcrições não é o registo exato do que foi dito, mas resumos, ou seja aquilo que as pessoas que escutam consideram "o essencial" do que as pessoas escutadas disseram.

Quando li esses resumos - muitos anos depois de me confrontar com "notícias" que por sua vez interpretavam essas interpretações, e que foram publicadas quando o processo em causa não era ainda de acesso público, significando que eu própria não podia sequer, nessa fase, aquilatar da justeza das interpretações jornalísticas (chamemos-lhe assim, mesmo se em muitos casos havia zero de jornalismo, se entendido no rigor das suas regras, nessas "notícias") - maravilhei-me duplamente. Pelo facto de conversas sem qualquer interesse para a descoberta de uma qualquer verdade "criminal" terem sido transcritas - o que implicava terem sido valoradas por autoridade judiciais como meio para a descoberta dessa mesma verdade - e pela forma como tinham sido "noticiadas".

Houve por exemplo "notícias" em que me foram atribuídas conversas que eram afinal, percebi nas transcrições (e digo percebi porque, sabendo que nunca as tinha tido, não havia como saber por que raio mas atribuíam), de outras pessoas que não eu; houve "notícias" em que me foram imputadas intenções totalmente inversas daquelas que estavam em causa nas conversas; e houve "notícias" que simplesmente comungavam das interpretações de total má fé - não é possível chamar-lhe outra coisa - de quem transcreveu.

Há muitos exemplos, mas não tendo nesta coluna espaço infinito, darei apenas um: saíram "notícias" sobre aquilo que seria a narrativa de um modus operandi criminal de um arguido como tendo-me sido comunicada por uma pessoa que viria a ser também arguida (e que estava já sob escuta) quando afinal a conversa em causa constava da leitura que essa pessoa estava a fazer-me dos jornais que comprara nesse dia, na sequência da detenção de três dos arguidos do processo. Extraordinariamente, nos resumos das escutas, ninguém achara importante anotar que aquela conversa era isso mesmo: alguém a ler narrativas jornalísticas que por sua vez, em perfeita pescadinha de rabo na boca, se baseavam na narrativa da própria autoridade judiciária que estava a escutar - e a minha reação e da outra pessoa a tais revelações.

Contado assim, parece até cómico, não é? Sucede que não, não tem graça nenhuma perceber a que ponto se pode chegar, não só no desrespeito pelas pessoas, como (talvez ao menos isto para a maioria - que tão bem parece conviver com a devassa tantas vezes absolutamente gratuita, com o único intuito de achincalhar e destruir, da vida dos outros - seja relevante) no desprezo por aquilo a que costuma chamar a "verdade material". Que esse desprezo exista no mundo infecto dos tablóides (cada vez mais hegemónico na comunicação social portuguesa, mesmo nos órgãos que se afirmam "de referência") é mau que chegue; constatar que as próprias autoridades judiciárias empenham em algo com a gravidade de escutas a seriedade e o rigor de um qualquer tabloideiro é aterrorizador e talvez explique por que motivo há processos que se arrastam sem conclusão à vista: chama-se muito simplesmente incompetência.

Claro que deveria, muito antes de novembro de 2014 - como é evidente, tenho estado sempre a falar da minha experiência pessoal como pessoa escutada fortuitamente no âmbito da Operação Marquês -, saber que essa incompetência malévola, que faz de inquéritos judiciais processos de intenções os quais, não raro, se esboroam perante a sindicância de magistrados que levam a sério a sua responsabilidade de aplicar a lei sem olhar a quem, não é incomum na justiça portuguesa. Nunca esqueci que um dos "indícios" do processo Casa Pia apontado em "notícias" (indício de quê, desde logo?) era uma conversa de Paulo Pedroso com um homem a quem o ex-governante chamava "menina" e que a investigação não conseguira identificar - conversa que, viemos a saber porque a pessoa em causa se revelou publicamente, era afinal com uma mulher (e, claro, nada tinha a ver com o objeto da investigação; como é sabido, Pedroso, depois de ter estado preso preventivamente mais de seis meses, e de ter a vida destruída pela monstruosa suspeita de abuso sexual de menores, veria o Tribunal de Instrução Criminal decidir, em maio de 2004, não haver indícios que permitissem levá-lo a julgamento, acabando por, 14 anos depois, ganhar no Tribunal Europeu de Direitos Humanos o direito a ser indemnizado pelo Estado Português em 68 mil euros por ter sido vítima de detenção ilegal).
Mas mesmo tendo noção de que coisas dessas aconteciam, mesmo tendo como jornalista reportado tantas vezes sobre incompetência e desmandos das polícias, do ministério público, de juízes, tantas vezes me ter deparado com situações de injustiça pungente e revoltante, nunca me tinha acontecido a mim -- e não há nada, na forma como vimos e sentimos as coisas, que substitua acontecer connosco.

E porque vos conto tudo isto? Para já porque o efeito desses "erros" (chamemos-lhes assim) perdura na minha vida, e perdurará decerto até ao seu fim, por mais ações que intente (e ganhe) contra quem quis deles fazer a minha condenação na praça pública - já que não fui indiciada fosse do que fosse, restava isso. E porque quem quer que seja que cometeu esses "erros" continua decerto alegremente a fazer o que fazia, como fazia - tenha-se ou não demonstrado que a forma como "investiga" e acusa resulta em processos coxos, megalómanos e infindáveis que desembocam em becos sem saída ou na mais que provável prescrição.

Porque nunca existiu aquilo a que um ex-presidente da República deu o nome de "sobressalto cívico" em relação à forma corrupta e corruptora do regular funcionamento das instituições democráticas - e portanto da democracia - como o sistema judicial se tem aliado a uma cultura jornalística tabloide para, nas palavras da procuradora geral adjunta Maria José Fernandes no seu artigo de opinião no Público ("Ministério Público: como chegámos aqui?") que incendiou esta segunda-feira, exercer "a investigação criminal como uma extensão de poder sobre outros poderes, sobretudo os de natureza política", sendo quem se opõe a essa prática "rotulado [de] protetor dos corruptos".

Porque alguém como António Costa, malgrado ter vivido de tão perto as perversidade inomináveis do Processo Casa Pia, nunca teve a coragem de tentar, mesmo se a isso desafiado por Rui Rio, pensar uma forma de fazer da justiça portuguesa uma instituição menos manobrável por poderes ocultos, mais eficiente e mais - passe o pleonasmo - justa. Não cabe apenas a Costa, evidentemente, o ónus de nestes quase 50 anos de democracia nada ter sido feito nesse sentido, e não é despiciendo para esse imobilismo que o PS esteja, vai fazer uma década, assombrado pela acusação de corrupção a um ex-secretário-geral e ex-primeiro-minidstro. Mas o seu - de Costa e do PS - tão taticista quão ingénuo "à justiça o que é da justiça, à política ou que é da política", encontrou-se a 7 de novembro com a sarcástica comprovação da sua impossibilidade. A justiça arrombou a porta que nunca existiu.

Como chegámos aqui, pergunta Maria José Fernandes no seu corajoso e lúcido artigo. Como não chegaríamos, se já aqui estávamos há tanto tempo?

QOSHE - E como não chegaríamos aqui? - Fernanda Câncio
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E como não chegaríamos aqui?

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21.11.2023

Quando li que entre as transcrições de escutas da Operação Influencer tinham sido detetados vários erros, confesso não ter achado surpreendente. E há um motivo específico para tal que não apenas o de errar ser completamente humano; é que já tive o grato prazer de ler transcrições de escutas telefónicas nas quais fui, como se costuma ler na imprensa da especialidade, "apanhada" (todo um programa nesta palavra) - querendo dizer que fui escutada "fortuitamente" quando liguei para números de telefone que estavam sob escuta por parte da justiça.

Há poucas coisas mais estranhas que ler a interpretação que alguém faz de conversas ou de mensagens telefónicas que trocámos com outras pessoas. E digo interpretação porque, numa primeira fase dos processos, aquilo que está nas transcrições não é o registo exato do que foi dito, mas resumos, ou seja aquilo que as pessoas que escutam consideram "o essencial" do que as pessoas escutadas disseram.

Quando li esses resumos - muitos anos depois de me confrontar com "notícias" que por sua vez interpretavam essas interpretações, e que foram publicadas quando o processo em causa não era ainda de acesso público, significando que eu própria não podia sequer, nessa fase, aquilatar da justeza das interpretações jornalísticas (chamemos-lhe assim, mesmo se em muitos casos havia zero de jornalismo, se entendido no rigor das suas regras, nessas "notícias") - maravilhei-me duplamente. Pelo facto de conversas sem qualquer interesse para a descoberta de uma qualquer verdade "criminal" terem sido transcritas - o que implicava terem sido valoradas por autoridade judiciais como meio para a descoberta dessa mesma verdade - e pela forma como tinham sido "noticiadas".

Houve por exemplo "notícias" em que me foram atribuídas conversas que eram afinal, percebi nas transcrições (e digo percebi porque, sabendo que nunca as tinha tido, não havia como saber por que raio mas atribuíam), de outras pessoas que não eu; houve "notícias" em que me foram imputadas intenções totalmente........

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