"O Movimento pelos Direitos do Povo Palestiniano e pela Paz no Médio Oriente (MPPM) rejeita "os lamentos" daqueles que "hipocritamente condenam as ações violentas de resistência dos oprimidos e se calam desde há décadas (ou pior, colaboram) perante a violência da ocupação (...). Os que há décadas convivem com a ausência de um real processo político conducente a uma solução que respeite os direitos do povo palestiniano não têm autoridade moral para hoje se queixarem das tempestades que provocaram".

Este parágrafo faz parte de um texto publicado a 8 de outubro no site abrilabril, sob o título "MPPM - Só Haverá Paz quando forem reconhecidos os direitos do povo palestiniano". O MPPM é um dos organizadores de todas as manifestações convocadas no último mês em apoio à Palestina.

Já o site abrilabril, cujo cognome é "o outro lado das notícias" e não apresenta na sua ficha técnica um único jornalista - ou seja, alguém cujo nome conste na listagem de jornalistas da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, e portanto legalmente habilitado a noticiar -, merece aqui um breve parêntesis graças ao texto que publicou no próprio dia 7 de outubro. Sob o título "Resistência palestiniana unida em torno da operação contra Israel", descreve, citando a Prensa Latina (agência de notícias cubana), o ataque do Hamas como "uma incursão terrestre em território ocupado em 1948", tornando assim claro encarar todo o território de Israel - fundado como país nesse ano após a aprovação de uma resolução da ONU no sentido da partição do território em dois estados, um para judeus e outro para palestinianos -, como ilegitimamente ocupado e assim, quiçá, todos os seus ocupantes como alvos legítimos.

Fechando o parêntesis, voltemos à "notícia", não assinada, sobre o comunicado do MPPM, a qual também não permite confusão sobre a forma como este movimento encarou o ataque do Hamas. Começando pelo facto de o nome da organização não ser mencionado uma única vez: fala-se apenas de "resistência palestiniana".

"O MPPM", lê-se, "reage assim às ações desencadeadas em Gaza e Israel na madrugada deste sábado (...) quando militantes de organizações de resistência palestiniana lançaram, a partir da Faixa de Gaza, um ataque de surpresa, em larga escala, no que apelidaram de Operação Dilúvio Al-Aqsa. Segundo as organizações, a ação foi uma resposta à profanação da Mesquita Al-Aqsa e ao aumento da violência dos colonos (...)."

Indo diretamente à fonte, ou seja ao site do MPPM, verifica-se que o comunicado, assinado pela "direção nacional do MPPM", presidida pela atriz e encenadora Maria do Céu Guerra e tendo como vice-presidentes o professor universitário aposentado de origem egípcia Adel Yussef Sidarus, o também professor universitário e investigador da Universidade de Lisboa Carlos José Duarte Almeida e o teólogo dominicano Frei Bento Domingues, finda com o que parece ser um manifesto apoio à ação daquele dia: "O MPPM reafirma a sua solidariedade com o povo palestino e o seu inalienável direito à resistência contra a ocupação, até à vitória da sua justa causa."

Será que todas as pessoas da direção deste movimento subscrevem tal posição, perante um ataque terrorista com o nível de barbaridade do de dia 7? Custa a crer. Mas sendo certo que quando este comunicado foi publicado ainda não eram conhecidos todos os contornos da ação ali descrita como "resistência contra a ocupação", quer no que respeita ao número de mortos e à sua identidade - sobretudo, como se soube logo ao fim desse dia e no seguinte, civis, famílias residentes no sul de Israel, jovens que tinham ido a um festival de música e que foram executados às centenas - nem as formas horríveis como foram assassinados (tanto tempo depois ainda não se sabe tudo) e o número de reféns, incluindo crianças e até bebés, levados pelos terroristas para Gaza, não se encontra qualquer texto posterior no site do movimento a retificá-lo. Aliás, o comunicado seguinte surge quase um mês depois, este domingo, e tem como único propósito causticar o Presidente da República pelas suas (muito infelizes e despropositadas, sem dúvida) declarações "dirigindo-se ao Embaixador da Palestina em Portugal e perante a comunicação social".

Mas, ao contrário do que sucedeu com tantos dos críticos desse triste momento do PR, o MPPM não se atira a Marcelo Rebelo de Sousa por se ter dirigido ao representante da Autoridade Palestiniana em Portugal dizendo "desta vez foram vocês que começaram" - como se o ataque perpetrado pelo Hamas contra Israel tivesse sido da autoria de todos os palestinianos, inclusive do governo da Cisjordânia (que o diplomata representa em Portugal, e que nada tem a ver com o Hamas), cabendo-lhes uma responsabilidade coletiva por ele.

Não, nada disso. O MPPM "afirma-se chocado" por, explica, as declarações de Marcelo "se caracterizarem por ignorar totalmente o massacre em curso do povo palestino". Não houve, prossegue, "nenhum reparo crítico aos ataques de Israel a hospitais, escolas, centro de abrigo de refugiados, colunas de refugiados, ambulâncias, pessoal humanitário. (...) Não se escutou uma palavra de indignação pelo castigo coletivo de uma população que se vê privada de água, eletricidade, alimentos e cuidados médicos - e da vida - (...) Qualquer que fosse a intenção do Presidente da República, as suas palavras podem ser e estão a ser interpretadas, nacional e internacionalmente, como um apoio incondicional à agressão israelita em curso."

Não fosse o assunto tão trágico e apreciar-se-ia mais a ironia: afinal, o MPPM não poderia censurar ao PR aquilo que o próprio MPPM fez no seu primeiro comunicado, a saber, aglutinar todo o povo palestino à ação do Hamas. Não; censura-lhe exatamente o que o próprio MPPM fez em relação ao massacre perpetrado pelo Hamas: ignorar totalmente, "sem uma palavra de indignação pelo castigo coletivo de uma população". Podemos, pois, como o MPPM sobre o PR, concluir que, qualquer que fosse a intenção da direção nacional deste movimento, as suas palavras podem ser interpretadas como "um apoio incondicional" à ação do Hamas.

Um apoio incondicional de resto claramente vocalizado por outro dos coletivos que com o MPPM tem convocado manifestações, a começar pela de 9 de outubro no Largo de Camões, apresentada como de "apoio à resistência palestiniana": o Coletivo pela Libertação da Palestina.

Nessa ocasião, a palestiniana Shahd Wadi, que foi candidata independente pelo Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu em 2014 e integra o dito coletivo, afirmou à TVI: "O que aconteceu no dia 7 não foi mais que a reação a uma ocupação ilegal de 75 anos. As pessoas que estão nesta manifestação [e lá estava, diz a Lusa, também um membro da direção do MPPM, Carlos Almeida] são todas contra a ideologia do Hamas mas estão com o direito do povo palestiniano à resistência. Os acontecimentos dos últimos dias são apoiados por todas as fações políticas na Palestina e pelo povo palestiniano inteiro. Portanto também é preciso deixar isso claro: é um povo que está oprimido e a viver sob um sistema de apartheid permanente e não pode mais, tem o direito a defender-se e não ficar de mãos atadas."

Outro membro do coletivo, o jornalista Ricardo Ribeiro, disse à Lusa: "Obviamente que legitimamos a ação de resistência, este é um povo que está ocupado há 75 anos e tem, como todos os povos ocupados, o direito de resistir à ocupação, utilizando os meios que tem à sua disposição, incluindo a [luta] armada, tal como diz o direito internacional mas também como mostrou a história anticolonial durante o século XX".

No Twitter/X, Ribeiro tinha já, no dia anterior, reputado de "legítimo" o método do Hamas e, perante uma pergunta concreta sobre o que via como legítimo - "homens armados andarem a caçar civis na rua e em suas casas, violarem e despirem mulheres e exibirem-nas como troféus de caça, sequestrarem centenas de civis por serem israelitas" -, respondia: "São colonos, em primeiro lugar."

Portanto, sim, também em Portugal há quem não condene - muito pelo contrário - o Hamas e o 7/10.

Decerto que muitas das pessoas que saem à rua em defesa dos palestinianos que estão a ser massacrados pelas bombas de Israel e atacados, perseguidos e mortos pelos - esses sim - colonos (porque dos colonatos ilegais) na Cisjordânia não subscrevem as palavras dos citados organizadores das manifestações; provavelmente nem as conhecem.

Mas - este é mesmo um grande mas - ninguém deverá surpreender-se por haver tanta gente que, pugnando pelo direito à autodeterminação dos palestinianos, condenando o regime apartheidista, racista e fascista em que Israel se tem vindo a tornar, e atormentando-se ante a carnificina causada pelos ataques israelitas, passa ao largo de tão infausta companhia.

Porque quem grita massacre e apela, contra Israel, ao cumprimento da lei internacional humanitária, mas tão alegremente reputa de "legítimo" o que o Hamas é e faz, incluindo a forma assassina como usa o povo que mantém, desgraçadamente, sob seu poder, não sabe, nunca saberá, o que é ser pelos direitos humanos.

QOSHE - E tu, já não condenaste hoje o Hamas? - Fernanda Câncio
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E tu, já não condenaste hoje o Hamas?

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07.11.2023

"O Movimento pelos Direitos do Povo Palestiniano e pela Paz no Médio Oriente (MPPM) rejeita "os lamentos" daqueles que "hipocritamente condenam as ações violentas de resistência dos oprimidos e se calam desde há décadas (ou pior, colaboram) perante a violência da ocupação (...). Os que há décadas convivem com a ausência de um real processo político conducente a uma solução que respeite os direitos do povo palestiniano não têm autoridade moral para hoje se queixarem das tempestades que provocaram".

Este parágrafo faz parte de um texto publicado a 8 de outubro no site abrilabril, sob o título "MPPM - Só Haverá Paz quando forem reconhecidos os direitos do povo palestiniano". O MPPM é um dos organizadores de todas as manifestações convocadas no último mês em apoio à Palestina.

Já o site abrilabril, cujo cognome é "o outro lado das notícias" e não apresenta na sua ficha técnica um único jornalista - ou seja, alguém cujo nome conste na listagem de jornalistas da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, e portanto legalmente habilitado a noticiar -, merece aqui um breve parêntesis graças ao texto que publicou no próprio dia 7 de outubro. Sob o título "Resistência palestiniana unida em torno da operação contra Israel", descreve, citando a Prensa Latina (agência de notícias cubana), o ataque do Hamas como "uma incursão terrestre em território ocupado em 1948", tornando assim claro encarar todo o território de Israel - fundado como país nesse ano após a aprovação de uma resolução da ONU no sentido da partição do território em dois estados, um para judeus e outro para palestinianos -, como ilegitimamente ocupado e assim, quiçá, todos os seus ocupantes como alvos legítimos.

Fechando o parêntesis, voltemos à "notícia", não assinada, sobre o comunicado do MPPM, a qual também não permite confusão sobre a forma como este movimento encarou o ataque do Hamas. Começando pelo facto de o nome da organização não ser mencionado uma única vez: fala-se apenas de "resistência palestiniana".

"O MPPM", lê-se, "reage assim às ações desencadeadas em Gaza e Israel na madrugada deste sábado (...) quando militantes de organizações de resistência palestiniana lançaram, a partir da Faixa de Gaza, um ataque de........

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