A 9 de dezembro, o jornal britânico Guardian publicou uma notícia baseada noutra notícia de outro jornal, o israelita Haaretz. Dizia o Guardian, logo no subtítulo, que a proporção/percentagem de civis palestinianos mortos (que refere ser 61%) nos então pouco mais de dois meses da guerra Israel/Gaza é superior à de todos os conflitos desde o século XX.

A 10 de dezembro, o Guardian emendava a notícia e acrescentava, como é aconselhável costume neste e noutros jornais, uma nota/errata no seu final, na qual se lê "no anterior subtítulo dizia-se que a proporção de mortes civis é mais elevada que em todos os conflitos mundiais do século XX; como se lê no texto, o correto é que a percentagem é mais elevada que a proporção média de mortes civis nesses conflitos." A 18 de dezembro, lê-se na nota de rodapé, houve nova correção devida a uma clarificação no artigo fonte (o do Haaretz): os conflitos analisados foram os da Segunda Guerra Mundial até aos anos 1990, não de todo o século XX.

É muita emenda para uma só notícia, sobretudo uma notícia destas, sobre um assunto destes - mais mortos ou menos mortos que - e dizendo ainda por cima respeito a uma guerra em curso, quando qualquer pessoa minimamente informada tem de saber que contabilidade de mortos é uma das ciências menos exatas da humanidade: quem conta, como conta, com que objetivo e com que credibilidade?

Ainda assim a notícia, mais as suas erratas, teve uma vantagem: pôr-me a pensar sobre o assunto, para concluir que não fazia ideia nenhuma de qual seria a guerra mais mortífera dos séculos XX e XXI e que se me aparecesse a pergunta no Trivial Pursuit teria de lançar um nome ao calhas, entre os conflitos mais terríveis de que tenho conhecimento (sendo provável que o genocídio no Ruanda, com a sua estimativa de meio milhão a 800 mil mortos em cerca de mês e meio, me viesse logo à cabeça - ainda que não consistindo naquilo a que habitualmente damos o nome de "guerra", entendida como um conflito com dois ou mais "lados" armados, que se combatem). Tão ao calhas como seria muito provavelmente a "resposta certa" do jogo, já que a definição de "guerra mais mortífera" tem que se lhe diga: falamos do número total de mortos ou da proporção em relação à população em causa? Apenas de mortos civis ou de todos os mortos? E devemos fazer uma relação entre o número de mortes e o espaço de tempo em que ocorreram, ou é indiferente? Para não emperrarmos na questão inicial: quem contou, como, quando e com que credibilidade?

Exemplifico com outro artigo do Guardian (se o Guardian lesse o Guardian, ai), este de 2008, sobre a conclusão de um grupo de historiadores alemães comissionados para certificar o número de mortos causados pelo bombardeamento aliado de Dresden durante a Segunda Guerra Mundial, nas noites de 13 e 14 de fevereiro de 1945. Havia quem falasse de meio milhão de fatalidades - caso do partido neo-nazi alemão Pátria/Partido Nacional Democrata, que em 2005 se lhe referiu, com óbvio intuito derrisório, como "holocausto". Mas a comissão de 11 historiadores apontou "apenas" entre 18 e 25 mil. É ainda assim um número brutal - e mais ainda atendendo a que resulta de quatro raids noturnos e de um total de 63 minutos de bombardeamentos, durante os quais foram despejados na cidade quase quatro mil toneladas de explosivos e bombas incendiárias.

A esmagadora maioria dos mortos de Dresden seriam civis e refugiados - a guerra estava no fim. Mas, apesar de ser o mais conhecido, não é o mais letal bombardeamento da Segunda Guerra, longe disso. Há, claro, as bombas atómicas largadas no Japão - é disso que toda a gente se lembra quando pensa no pior bombardeamento da história - mas o bombardeamento de Tóquio, a 10 de março de 1945, é apontado como ainda mais mortífero: numa só noite as 1500 toneladas de bombas incendiárias largadas por 300 bombardeiros americanos teriam chacinado 100 mil pessoas.

Fui buscar isto porquê? Porque, como diz uma notícia na CNN sobre o bombardeamento de Tóquio, muita gente nunca ouviu falar dele. Como muita gente não terá qualquer ideia de quantos mortos causou, por exemplo, a invasão soviética do Afeganistão, considerada, nos 10 anos que durou, uma das guerras mais mortíferas do século XX - estima-se que entre 6,5% e 11,5% da população afegã terá perecido durante o conflito, com os números de mortes civis variando, conforme os cálculos, entre meio milhão e dois milhões (o que face às mortes dos combatentes, que não ultrapassarão 130 mil, surge como uma percentagem brutal).

Há muito mais guerras cuja contabilidade de mortes civis é pouquíssimo conhecida, ou mesmo muito deficientemente calculada, por motivos óbvios: há pouco acesso de organizações humanitárias, quem manda não tem interesse em fazer essas contas (é pensar na Chechénia e na Síria, por exemplo) e/ou, para começar, a contabilidade da população era, por ausência de um Estado estruturado, deficiente, como deficiente será a contabilidade dos mortos - Iémen, Etiópia, etc.

Fazer comparações entre números, proporções ou percentagens de civis mortos em todas as guerras de mais de um século é, pelos motivos expostos, bastante árduo, para não dizer impossível - e decerto que comparar "médias" é ainda mais estranho: serve para quê?

Percebe-se que se queira frisar que o número de civis mortos por Israel é aterrador, mas não precisamos de comparar com outras guerras - até porque, como demonstrado, há, até entre as mais conhecidas, contabilidades muito mais terríveis.

Percebe-se que se queira concluir que Israel não só não se importa de matar civis como faz por isso - e a execução, pelas tropas israelitas, dos três reféns israelitas que tinham conseguido escapar aos seus algozes e avançavam, desarmados, ao encontro do que acreditavam ser a salvação, é a melhor e mais pungente prova de que as forças armadas de Israel estão fora de controlo.

Mas, sendo a história mundial dos massacres um infinito de pavor, e a nossa memória um prodígio de esquecimentos, o mais certo é que quem procure usar números de mortos para comparar mobilizações humanitárias e políticas, ou para demonstrar a existência de diferentes pesos e medidas, acabe a evidenciar isso mesmo: o seu (nosso) próprio, as mais das vezes tão ignaro, viés.

QOSHE - Gaza ou as olimpíadas da morte - Fernanda Câncio
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Gaza ou as olimpíadas da morte

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19.12.2023

A 9 de dezembro, o jornal britânico Guardian publicou uma notícia baseada noutra notícia de outro jornal, o israelita Haaretz. Dizia o Guardian, logo no subtítulo, que a proporção/percentagem de civis palestinianos mortos (que refere ser 61%) nos então pouco mais de dois meses da guerra Israel/Gaza é superior à de todos os conflitos desde o século XX.

A 10 de dezembro, o Guardian emendava a notícia e acrescentava, como é aconselhável costume neste e noutros jornais, uma nota/errata no seu final, na qual se lê "no anterior subtítulo dizia-se que a proporção de mortes civis é mais elevada que em todos os conflitos mundiais do século XX; como se lê no texto, o correto é que a percentagem é mais elevada que a proporção média de mortes civis nesses conflitos." A 18 de dezembro, lê-se na nota de rodapé, houve nova correção devida a uma clarificação no artigo fonte (o do Haaretz): os conflitos analisados foram os da Segunda Guerra Mundial até aos anos 1990, não de todo o século XX.

É muita emenda para uma só notícia, sobretudo uma notícia destas, sobre um assunto destes - mais mortos ou menos mortos que - e dizendo ainda por cima respeito a uma guerra em curso, quando qualquer pessoa minimamente informada tem de saber que contabilidade de mortos é uma das ciências menos exatas da humanidade: quem conta, como conta, com que objetivo e com que credibilidade?

Ainda assim a notícia, mais as suas erratas, teve uma vantagem: pôr-me a pensar sobre o assunto, para concluir que não fazia ideia nenhuma de qual seria a........

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