"É muito simples, não é não. Eu nunca farei um acordo político de governação com o Chega”.

Todos - pelo menos os todos que se interessam por estas eleições e seguem a actualidade político-partidária - por esta altura conheceremos esta afirmação categórica de Luís Montenegro, expressa pela primeira vez nestes termos em setembro de 2023 e bastas vezes repetida. Também seremos muitos a lembrar que no debate televisivo com o líder do partido de extrema-direita, a 12 de fevereiro, o presidente do PSD e candidato a primeiro-ministro pela coligação Aliança Democrática (AD) explicou os motivos do seu não: o Chega “tem muitas vezes opiniões racistas, xenófobas, populistas e excessivamente demagógicas” e “usa uma linguagem que não se compadece com os princípios do PSD”.

É claro que dizer de um partido que se caracteriza justamente por fazer do racismo e xenofobia as suas principais bandeiras, e nada mais tem senão posições populistas e demagógicas, que este tem “muitas vezes opiniões” com essas características surge desde logo como eufemístico - e deve fazer-nos questionar por que motivo quereria alguém colocar brandura na fundamentação se a intenção era afirmar uma total e irrevogável negativa em relação a possíveis entendimentos.

Digamos que desde logo essa formulação soft contradizia a assertiva dureza da negativa. Mas podia ser apenas uma questão de estilo discursivo, uma infelicidade fraseológica. Sucede que a reta final da campanha da AD veio demonstrar que das duas uma: ou a AD tem princípios muito mais parecidos com os do Chega do que Montenegro quer admitir, ou não tem sequer princípios - e como é apanágio de quem os não tem, muda o discurso conforme o que acha que pode dar votos, nesse caso achando que pastar nos terrenos da extrema-direita dá votos. E que não se importa nada de os colher.

Porque, como é evidente, não é possível sustentar que toda a sucessão de afirmações desgraçadas de notáveis do PSD, de Passos a Menezes (a falar de “as meninas do Bloco”), passando por Durão (mais o “brasão de armas” que distingue “os verdadeiros portugueses”), pelo cabeça de lista da coligação por Santarém (a ameaçar com milícias de agricultores e a denominar de “ideologia de extrema-esquerda” as preocupações com as alterações climáticas) e por uma participação especial do vice do CDS/PP e quarto candidato da AD por Lisboa (Paulo Núncio, a defender despudoradamente que se crie o máximo de dificuldades ao direito legal das mulheres a abortar em segurança), foi apenas um acaso. Ninguém acredita que um ex-líder do PSD como Passos Coelho iria a um comício da AD agitar, com o efeito que se antecipava, uma das bandeiras fetiche de André Ventura - a ligação da imigração a uma alegada “sensação de insegurança” -, sem concertar isso com a direção da campanha.

E Passos, convém lembrar, foi ao comício para - alegadamente - “ajudar” Montenegro, não para nos desvendar o que lhe vai na alma. Atirar, de um palco da AD, um gancho ao eleitorado do Chega não é um acaso. E se sabemos que Passos já tinha dito coisas parecidas antes, também sabemos, como ele e Montenegro sabem, que efeito obteve na altura.

Sabemos igualmente que Passos era o presidente do PSD e Montenegro o líder de bancada parlamentar quando o partido lançou o seu militante André Ventura como candidato à Câmara de Loures, mantendo-o "com tranquilidade" apesar de este ter decidido fazer do ataque à comunidade cigana o seu foco essencial e mesmo malgrado o CDS-PP, na altura liderado por Assunção Cristas, ter abandonado a coligação naquela autarquia devido ao discurso racista do cabeça de lista.

E, sabendo isso, não nos recordamos de nenhuma demarcação de Montenegro face ao posicionamento discriminatório de Ventura na campanha de Loures (houve quem no PSD, como Teresa Leal Coelho, se demarcasse) - pelo contrário, disponibilizou-se para participar nela.

Claro que as pessoas mudam, e as “opiniões racistas e xenófobas” de Ventura, que não chocaram Montenegro em 2017, poderiam chocá-lo agora. A linguagem taberneira, caluniosa e difamatória do líder do Chega pode chocar agora com os seus princípios quando à época não chocava. Poderia ser, até porque, para além de já não estar no mesmo partido que Montenegro, Ventura só tem vindo a piorar o que já era péssimo no seu discurso.

Mas a verdade é que ao longo dos últimos anos, mesmo após a criação do Chega, em 2019, não demos por essa rejeição de Montenegro. Pode ser uma imperdoável falha na minha memória, mas não me recordo de uma única vez em que o líder da AD tenha feito algo de remotamente semelhante ao que fez por exemplo o deputado social-democrata André Coelho Lima, que, de forma límpida e admirável, explicou no parlamento, a 15 de dezembro de 2022, o que o separa do Chega e de André Ventura - o André Coelho Lima que desapareceu da lista de candidatos a deputados nestas eleições.

Como não me lembro, pelo contrário, de ouvir uma palavra de Montenegro sobre o direito das mulheres a uma interrupção de gravidez segura - do que me lembro é de que era o líder da bancada parlamentar do PSD quando esta, com o CDS-PP, aprovou no último dia da legislatura 2011/2015 uma alteração à lei que visava, como se vangloriou a 20 de fevereiro Paulo Núncio num encontro organizado por uma associação anti-escolha, dificultar o mais possível o acesso a esse direito consagrado em referendo.

Dificultar o mais possível o acesso a um aborto seguro significa o que sempre significou em toda a parte do mundo: penalizar as mulheres pobres, as que não dispõem de 600 euros para ir a uma clínica privada, obrigando-as a recorrer a alternativas perigosas e ilegais. Significa o que sempre significou: matar mulheres. E não, nunca vimos Luís Montenegro evidenciar preocupação com isso ou vincar o seu respeito pelo direito das mulheres a serem donas de si - nem sequer agora, quando veio dizer, após serem conhecidas as posições expressas por Núncio em nome da AD, que “a lei não é para mexer e é assunto arrumado”.

Se há algo que aprendemos nos últimos tempos é que não, o direito ao aborto não é um assunto arrumado; os direitos das mulheres não são nunca um assunto arrumado. Precisamente por isso, a França, com um governo de centro-direita, tornou-se esta segunda-feira o primeiro país do mundo a consagrar na Constituição esse direito fundamental das mulheres a, perante uma gravidez não planeada, escolher se querem ou não ser mães, sem que para exercerem esse direito tenham de correr riscos para a saúde e a vida (e a sua liberdade).

O contraste entre esse marco histórico, defendido com orgulho por Macron, com a reação "não se fala mais disso" de Montenegro às posições expressas por Núncio em nome da coligação mostra bem a distância acabrunhante que separa os partidos da AD de uma concepção verdadeiramente social-democrata e liberal da sociedade em geral e dos direitos das mulheres em particular.

Perante este panorama, as considerações de Durão Barroso sobre o que distingue um “português verdadeiro” de um falso (porque, obviamente, se há “portugueses verdadeiros” tem de haver “portugueses falsos”) - segundo o ex-primeiro-ministro, é o apego à heráldica da pátria, no caso ao "brasão de armas” - são já, no seu eco do nome de um partido de extrema-direita finlandês, os “Verdadeiros Finlandeses” (que à letra, por graça, e a crer na Wikipédia, se traduz “finlandeses básicos”), um aspeto paródico. Tão paródico que quando ouvi um comentador televisivo referir-se-lhes e à defesa que o ex-presidente da Comissão Europeia fez da “família” (seja lá isso o que for) achei que devia ser engano, que o PSD não podia estar a querer transformar-se assim numa caricatura enfatuada, porque pretensamente superior, do Chega. Mas não, não era engano: o PSD quis mesmo, neste desfile de bafio e regressão civilizacional, mostrar-nos que a dupla negação de Montenegro no que a entendimentos com o Chega diz respeito não tem, não pode ter a ver, com qualquer princípio. Era só, afinal, sensação.

QOSHE - O “não é não” era afinal só sensação - Fernanda Câncio
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O “não é não” era afinal só sensação

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05.03.2024

"É muito simples, não é não. Eu nunca farei um acordo político de governação com o Chega”.

Todos - pelo menos os todos que se interessam por estas eleições e seguem a actualidade político-partidária - por esta altura conheceremos esta afirmação categórica de Luís Montenegro, expressa pela primeira vez nestes termos em setembro de 2023 e bastas vezes repetida. Também seremos muitos a lembrar que no debate televisivo com o líder do partido de extrema-direita, a 12 de fevereiro, o presidente do PSD e candidato a primeiro-ministro pela coligação Aliança Democrática (AD) explicou os motivos do seu não: o Chega “tem muitas vezes opiniões racistas, xenófobas, populistas e excessivamente demagógicas” e “usa uma linguagem que não se compadece com os princípios do PSD”.

É claro que dizer de um partido que se caracteriza justamente por fazer do racismo e xenofobia as suas principais bandeiras, e nada mais tem senão posições populistas e demagógicas, que este tem “muitas vezes opiniões” com essas características surge desde logo como eufemístico - e deve fazer-nos questionar por que motivo quereria alguém colocar brandura na fundamentação se a intenção era afirmar uma total e irrevogável negativa em relação a possíveis entendimentos.

Digamos que desde logo essa formulação soft contradizia a assertiva dureza da negativa. Mas podia ser apenas uma questão de estilo discursivo, uma infelicidade fraseológica. Sucede que a reta final da campanha da AD veio demonstrar que das duas uma: ou a AD tem princípios muito mais parecidos com os do Chega do que Montenegro quer admitir, ou não tem sequer princípios - e como é apanágio de quem os não tem, muda o discurso conforme o que acha que pode dar votos, nesse caso achando que pastar nos terrenos da extrema-direita dá votos. E que não se importa nada de os colher.

Porque, como é evidente, não é possível sustentar que toda a sucessão de afirmações desgraçadas de notáveis do PSD, de Passos a Menezes (a falar de “as meninas do Bloco”),........

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