Seis anos depois, em maio de 2022, o já presidente voltaria ao assunto, reformulando: “É tudo muito difícil numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século XX”. Ficou assim claro que para o PR esse Portugal velho, que em 2016 dizia derrotado pelo liberalismo, se havia afinal prolongado até ao estertor do salazarismo, só recuando ante o advento da democracia.

Nunca mais esqueci e já citei muitas vezes a prédica que o candidato Marcelo Rebelo de Sousa fez, na campanha presidencial de 2016 (a da sua primeira eleição), numa escola secundária da área metropolitana de Lisboa. Nela, além de elencar os aspetos em que considerava que a democracia portuguesa ainda apresentava deficiência - como o estatuto da mulher e a discriminação das minorias/racismo -, garantiu que “o Portugal absolutista miguelista, o Portugal ‘velho’ derrotado no século XIX pelos liberais”, continua a existir, “ainda cá anda, sempre à espreita, e de vez em quando tem irrupções.”

Seis anos depois, em maio de 2022, o já presidente voltaria ao assunto, reformulando: “É tudo muito difícil numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século XX”. Ficou assim claro que para o PR esse Portugal velho, que em 2016 dizia derrotado pelo liberalismo, se havia afinal prolongado até ao estertor do salazarismo, só recuando ante o advento da democracia.

Impossível não recordar estas palavras quando, após o PR ter sábado, na comunicação pré-eleitoral ao país, falado de “um ciclo que, nestes 50 anos do 25 de Abril se fecha, e outro que se abre”, deparamos com um crescimento exponencial da extrema-direita, que quadruplica os deputados.

De que “fim de ciclo” falava Marcelo, e que “novo ciclo” pressagiava? Era apenas (um apenas com muitas aspas), como lemos esta segunda-feira no Expresso, pela pena da sua habitual porta-voz jornalística (Ângela Silva), a expressão, pelo presidente da República e em pleno dia de reflexão, portanto ao arrepio das exigências do cargo e de toda a decência, do seu desejo de vitória da AD (aliás escancarado no referido artigo: “Conseguiu evitar o que mais temia - uma nova vitória do Partido Socialista que colasse as suas duas dissoluções do Parlamento a duas derrotas da sua família política”), ou o PR estava a prenunciar uma “irrupção” do tal Portugal antigo?

Seria o mínimo que o PR se explicasse, e já agora fosse por uma vez questionado, de preferência com microfones e câmaras à frente, sobre os recados que passa a vida a dar através do Expresso. Não só sobre o que ali se diz das suas óbvias predileções políticas como sobre os conselhos que dá, publicamente, ao líder da AD. O qual, a seu ver (ainda segundo o citado artigo desta segunda-feira), deve ir “avançando com medidas que não dependem de aprovação no Parlamento (negociar com os polícias, por exemplo)” e saber “aproveitar o excedente deixado por Fernando Medina para acudir a urgências” para “chegar ao Orçamento de Estado do próximo ano em condições de se vitimizar caso lhe derrubem a lei mais importante do ano”. Ou seja, temos o PR a dar, urbi et orbi, a tática ao seu partido com vista a alcançar um melhor resultado eleitoral, não nos poupando sequer ao reconhecimento de que o PS, cuja vitória tanto terá temido, foi tão incompetente que até deixou um muito útil excedente para o PSD instrumentalizar (o descaramento, deus).

É realmente espantoso assistir-se a este espetáculo e constatar que quase toda a gente, entre jornalistas e analistas, finge que não percebe o que se passa, mantendo face ao PR e ao seu cargo uma reserva solene de reverência da qual ele, como se vê, está longe de comungar e, logo, merecer.

Como se ser Presidente da República numa democracia eximisse alguém de crítica e sindicância, colocando-o no lugar intocável reservado aos monarcas. Como, lá está, se esta figura dos políticos eleitos para o mais algo cargo da nação os fizesse necessariamente parte do tal Portugal “antigo”, miguelista, que o próprio Marcelo, filho de um ministro do salazarismo, reconhece ter durado até à sua maioridade - o Portugal antigo de que ele é, sem segredo, um produto.

Lembre-se aliás que este mesmo PR, a 25 de Abril de 2021, assumiu, num discurso notável, a sua história pessoal de testemunha do ocaso do império português. Para frisar, e bem, que todos temos uma, incluindo os capitães de Abril, e sublinhar que esse grande acontecimento do nosso século XX foi, até pelo percurso dos seus obreiros, simultaneamente rutura e continuidade.

É: o Portugal que nasceu do 25 de Abril é um processo. Um processo, como nos lembra Marcelo (por palavras e atos), e agora também o esfuziante resultado da extrema-direita, no qual o Portugal antigo esteve andou sempre por aí, esperando a sua oportunidade.

E é isso mesmo, dizia esta segunda-feira no Twitter Vicente Valentim, cientista político na Universidade de Oxford, que explica o rápido crescimento da extrema-direita a que se está a assistir em vários países do mundo, e também agora cá. “Muitas pessoas tinham já visões de extrema-direita, mas não as expressavam porque temiam o ostracismo social”, escreveu o investigador, que defende essa tese no livro O Fim da Vergonha - Como a Direita Radical se Normalizou (a publicar em abril). Com o surgimento de líderes habilidosos (como Ventura), é possível, argumenta, que movimentos com estas características “cresçam muito rapidamente - basta as pessoas começarem a agir em consonância com o que pensem/sentem.”

Desse processo de normalização em curso, que deu já tão óbvios frutos (e passa pela assolapada paixão mediática pelo líder do Chega), é exemplo perfeito o que ouvi esta segunda-feira quando uma mulher, sentada numa paragem de autocarro em Oeiras, disse ao microfone da SIC-N que tinha votado no partido de extrema-direita porque quer “para as filhas, netos e bisnetas o que havia antigamente, antes do 25 de Abril”. Perguntada pela jornalista sobre se nesse caso achava que o seu voto “vai melhorar a vida democrática do país”, a entrevistada diz que sim e que espera “melhoras na habitação e saúde”.

Confesso que, embora sabendo haver muita gente, incluindo entre quem a experienciou, que mitifica a ditadura - também já escrevi aqui sobre isso, e sobre o facto de a meu ver tal dever ser interpretado, paradoxalmente, como sinal do triunfo da democracia e das suas conquistas, dadas como tão adquiridas que nem há capacidade para imaginar ou recordar o que foi o salazarismo -, não me habituei ainda a ver tal mitificação brandida com tanto orgulho, e tratada, como sucedeu com a (jovem) jornalista da SIC-N, com tamanha banalidade.

Desculpem-me se não concebo que aquela afirmação não ocasionasse o exacto contrário da pergunta feita - porque, óbvio, quem tem saudades da ditadura e justifica com elas o voto num partido em princípio não está a pensar contribuir para “melhorar a vida democrática do país”. Admito que a pergunta da minha camarada de profissão tenha sido irónica, mas o que resulta dela é fazer parecer que antes do 25 de Abril não só havia democracia como era melhor e com mais condições sociais, serviços e apoios públicos que agora - o que é apenas uma barbaridade.

Que ante tal barbaridade uma jornalista passe em frente, como se não conseguisse descortinar a falsificação ou achasse que não lhe cabe esclarecer quem ouve (e até a entrevistada), porque, quiçá, tal seria visto e causticado como opinião ou tomada de posição política, é bem sinal do estado a que chegámos.

QOSHE - O Portugal novo e o Portugal antigo - Fernanda Câncio
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O Portugal novo e o Portugal antigo

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12.03.2024

Seis anos depois, em maio de 2022, o já presidente voltaria ao assunto, reformulando: “É tudo muito difícil numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século XX”. Ficou assim claro que para o PR esse Portugal velho, que em 2016 dizia derrotado pelo liberalismo, se havia afinal prolongado até ao estertor do salazarismo, só recuando ante o advento da democracia.

Nunca mais esqueci e já citei muitas vezes a prédica que o candidato Marcelo Rebelo de Sousa fez, na campanha presidencial de 2016 (a da sua primeira eleição), numa escola secundária da área metropolitana de Lisboa. Nela, além de elencar os aspetos em que considerava que a democracia portuguesa ainda apresentava deficiência - como o estatuto da mulher e a discriminação das minorias/racismo -, garantiu que “o Portugal absolutista miguelista, o Portugal ‘velho’ derrotado no século XIX pelos liberais”, continua a existir, “ainda cá anda, sempre à espreita, e de vez em quando tem irrupções.”

Seis anos depois, em maio de 2022, o já presidente voltaria ao assunto, reformulando: “É tudo muito difícil numa pátria em que a monarquia absoluta durou do quase início da sua história até ao quase final do século XX”. Ficou assim claro que para o PR esse Portugal velho, que em 2016 dizia derrotado pelo liberalismo, se havia afinal prolongado até ao estertor do salazarismo, só recuando ante o advento da democracia.

Impossível não recordar estas palavras quando, após o PR ter sábado, na comunicação pré-eleitoral ao país, falado de “um ciclo que, nestes 50 anos do 25 de Abril se fecha, e outro que se abre”, deparamos com um crescimento exponencial da extrema-direita, que quadruplica os deputados.

De que “fim de ciclo” falava Marcelo, e que “novo ciclo” pressagiava? Era apenas (um apenas com muitas aspas), como lemos esta segunda-feira no........

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