Quando em fevereiro, assumindo o papel de uma mulher que queria interromper a gravidez, comecei a ligar para hospitais perguntando se ali faziam e como era, não esperava encontrar, logo no primeiro telefonema, a resposta que fez o título do artigo com que inaugurei a série sobre acesso ao aborto legal em Portugal, e que o DN tem vindo a publicar.

"Aqui não fazemos, somos um hospital amigo dos bebés", disse-me a funcionária que me atendeu no Hospital da Guarda. Não faço ideia de como reagiria a esta frase uma mulher que realmente estivesse a tentar obter a informação porque queria interromper uma gravidez. Sei o que me disseram algumas das que entrevistei: que chegaram a chorar de desespero e angústia quer pela inesperada dificuldade em obter um cuidado de saúde que a Lei da República lhes garante desde 2007 - e que chegou ao fim de uma tão longa luta - quer pela forma desagradável, por vezes até desalmada, com que as trataram.

"Achei que era assim difícil de propósito, para as pessoas não abortarem", disse-me uma delas. Garanti-lhe que não, que não era suposto ser assim, que se tratava de erros do sistema. Dez meses, muita investigação e muitas revelações depois, hesito em contrariá-la.

Um sistema de saúde que foi permitindo, sem reação, que um hospital após outro (chegando a 30% do total) fechassem as consultas de interrupção de gravidez (IG) alegando objeção de consciência dos obstetras, não parece de facto preocupado com as dificuldades crescentes que as mulheres foram sentindo no acesso ao aborto legal, nem com o facto de que essas dificuldades penalizam desproporcionadamente as mais vulneráveis - por razão de estatuto económico, localização geográfica, nacionalidade, idade.

Um sistema no qual as administrações hospitalares, ou as direções clínicas ou dos serviços de obstetrícia - seja quem for que compila (ou inventa) os dados -, mentem quando questionadas sobre a contabilidade dos dias que obrigam as mulheres a esperar até à primeira consulta, garantindo que cumprem a lei, quando a investigação do DN demonstrou que ultrapassam, e em muito, o prazo máximo de cinco dias.

Um sistema que não garante, nos hospitais, centros de saúde e respetivos sites, a informação sobre interrupção de gravidez que deve ali estar patente - como frisa a auditoria da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), conhecida em setembro, tem de haver informação e encaminhamento em todos os estabelecimentos, quer ali se faça IG ou não.

Um sistema que nem se dá ao trabalho, como comprovou a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) na sua auditoria, de requerer aos objetores que assim se declarem formalmente e de manter deles um registo atualizado - apesar de ser a isso obrigado pela lei.

Um sistema de saúde em que há profissionais que se sentem à vontade para não colher sangue para análise a uma mulher que vai a uma consulta de IG, e a quem a respetiva Ordem (no caso, a dos enfermeiros) dá cobertura nessa recusa, classificando-a como "objeção de consciência", como se colher sangue para análise fosse um ato que faz parte do aborto, e como se tal recusa não constituísse uma falta profissional que releva de pura discriminação.

Um sistema de saúde que permite a uma farmacêutica hospitalar recusar a entrega de medicamentos requeridos por um médico porque se acha no direito a objetar a pegar numa caixa e dá-la a um auxiliar.

Um sistema de saúde no qual há médicos que não se coíbem de afirmar publicamente que acham o aborto um ato "menor", sem dignidade para ser efetuado por obstetras, garantindo haver muitos colegas que se dizem objetores não porque o sejam "em consciência", mas porque não estão para ter esse tipo de trabalho.

Um sistema que, claramente, valoriza muito mais a "liberdade" e "consciência" dos seus profissionais, a quem permite tais recusas de serviço e de respeito a cidadãs que querem interromper a gravidez, do que o direito à saúde, à dignidade, e à liberdade de tomar decisões sobre a sua vida, dessas mesmas cidadãs.

Um sistema que deixou crescer dentro de si uma frente invisível mas muito eficaz que, derrotada politicamente, se dedica ao boicote de uma lei que não quer cumprir.

Frente ancorada sobretudo numa classe profissional, a dos médicos, que se dá até ao luxo de ostentar um estatuto deontológico no qual se leem normas de puro desafio à legalidade democrática. É o caso desta, no artigo 64º do referido estatuto: "A interrupção do estado de gravidez, por decisão da mulher, pode ser proposta ao médico nos termos e prazos previstos na lei; o médico decide sobre a proposta, de acordo com os seus valores profissionais e com a sua consciência."

A ver se nos entendemos: estabelecendo a lei que os médicos objetores têm de se declarar como tal e como tal estão impedidos de participar nas consultas de IG, não cabe a qualquer médico "decidir sobre a proposta". Porque não é "uma proposta", é uma decisão da mulher, e se foi comunicada ao médico é porque está na consulta de IG, e se está na consulta não está ali para decidir sobre coisa alguma, mas para dar informação. (Quanto aos casos em que a decisão do aborto passa realmente por apreciação clínica - aqueles em que haja doença ou malformação fetal ou risco para a vida e saúde da mulher e ocorrem em prazos mais tardios da gravidez -, são decididos por uma comissão para tal nomeada e não por um médico apenas, e quem leva a cabo a interrupção são, mais uma vez, não objetores).

Que a Ordem dos Médicos mantenha, em 2023, e datado de 2016, um normativo que pretende sobrepor-se à Lei da República explica muito sobre o que se passa nos hospitais portugueses no que à IG respeita. E diz muito igualmente sobre o temor que as tutelas, e os partidos em geral, têm de afrontar esta classe. E sobre o que esta classe pensa de si e do seu papel numa sociedade democrática.

Era altura de acabarmos com este reino de senhores doutores, não?

QOSHE - O que aprendi sobre abortar em Portugal - Fernanda Câncio
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O que aprendi sobre abortar em Portugal

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13.12.2023

Quando em fevereiro, assumindo o papel de uma mulher que queria interromper a gravidez, comecei a ligar para hospitais perguntando se ali faziam e como era, não esperava encontrar, logo no primeiro telefonema, a resposta que fez o título do artigo com que inaugurei a série sobre acesso ao aborto legal em Portugal, e que o DN tem vindo a publicar.

"Aqui não fazemos, somos um hospital amigo dos bebés", disse-me a funcionária que me atendeu no Hospital da Guarda. Não faço ideia de como reagiria a esta frase uma mulher que realmente estivesse a tentar obter a informação porque queria interromper uma gravidez. Sei o que me disseram algumas das que entrevistei: que chegaram a chorar de desespero e angústia quer pela inesperada dificuldade em obter um cuidado de saúde que a Lei da República lhes garante desde 2007 - e que chegou ao fim de uma tão longa luta - quer pela forma desagradável, por vezes até desalmada, com que as trataram.

"Achei que era assim difícil de propósito, para as pessoas não abortarem", disse-me uma delas. Garanti-lhe que não, que não era suposto ser assim, que se tratava de erros do sistema. Dez meses, muita investigação e muitas revelações depois, hesito em contrariá-la.

Um sistema de saúde que foi permitindo, sem reação, que um hospital após outro (chegando a 30% do total) fechassem as consultas de interrupção de gravidez (IG) alegando objeção de consciência dos obstetras, não parece de facto preocupado com as dificuldades........

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