“Os miúdos que nascem agora estão tão longe do 25 de Abril como nós estávamos da 1ª Guerra Mundial.”

Quem me disse isto nasceu em 1968, a exatos 50 anos do final do final da dita guerra - uma guerra que conhecemos nos livros e em alguns filmes, narrativa tão distante e onírica como o faroeste americano ou as invasões francesas. Foi a primeira vez que percebi, em vertigem de desalento e estupor, como é possível aquilo que me parece impossível: que haja, nas gerações mais novas, quem ache que uma ditadura não é uma coisa assim tão má, e que uma democracia não é uma coisa assim tão estimável. É que não fazem qualquer ideia da diferença; todas as suas vidas e referências estão imersas, ensopadas, no sistema democrático.

A começar pela facilidade com que o podem colocar em causa: que outro sistema político é tão dúctil e paciente perante quem o insulta e despreza, quem lhe vaticina, deseja e planeia o fim? Que outro sistema permite que qualquer pessoa se sinta à-vontade para caluniar os respetivos representantes, para os acusar de tudo e mais alguma coisa sem, as mais das vezes, qualquer consequência? Que outro sistema admite os ataques mais soezes e destrambelhados como forma de combate político e hesita tanto em puni-los, por tanto execrar a severidade e o silenciamento?

A essa ausência de noção do que seria viver-se em ditadura - que explica o enlevo com soluções “musculadas” em que que cada vez mais tropeçamos nas redes sociais e na retórica política mas também em inquéritos sociológicos (num realizado em 2023 em 30 países - não incluindo Portugal - sob os auspícios da Open Society Foundation, de George Soros, 35% dos inquiridos entre os 18 e os 35 anos disseram que “ter um líder forte é uma boa forma de governar um país”; 42% dos mais jovens consideram até um regime militar como “uma boa forma de governar um país”) - adiciona-se outro desconhecimento profundo: o daquilo que, em termos de bem-estar, de “vida boa”, se deve à democracia. E esse desconhecimento está longe de se ater a quem nasceu muitos anos depois do fim da ditadura.

Encontramo-lo, na verdade, em grande parte das pessoas em Portugal. Porque para grande parte das pessoas esse bem-estar é a normalidade - é aquilo a que consideram, e muito justamente, ter direito. Aquilo em que não pensamos, que não consciencializamos: como um sistema, vá, de climatização do qual só nos lembramos quando falha. Quando de repente sentimos frio ou calor em vez de conforto, e pensamos: está estragado, não presta, precisamos de outro.

Não passamos a vida a louvar haver esgotos, água nas torneiras, eletricidade, hospitais, escolas, estradas - coisas que há 50 anos, ao contrário do que se passava na maioria dos países da Europa ocidental, estavam muito longe de garantidas para uma parte considerável da população.

Não passamos a vida a louvar haver uma sólida rede de apoio estatal para permitir aos cidadãos enfrentar o desemprego, a doença, a velhice, a pobreza. Não nos passa pela cabeça lembrarmo-nos de que coisas como subsídio de desemprego, pensões para todos - mesmo para quem, por esta ou aquela razão, por responsabilidade própria ou azares da vida, não fez descontos - e subsídio de parentalidade são conquistas da democracia.

Não passamos a vida a reparar que vivemos num dos países mais seguros e pacíficos do mundo e com uns dos serviços nacionais de saúde mais eficazes (sim, um dos mais eficazes). Aliás, pelo contrário: se há coisa em que passamos a vida a reparar é naquilo que falha.

O que nos ocorre é dizer que é pouco e devia ser mais, que já não devia haver pobres, que é iníquo haver pessoas a viver com tão pouco. É justo. É normal, claro, apontar o que falha; é apontando as falhas que se progride. O risco é que se confunda a existência de falhas com falhanço global; é que o ruído sobre tanta coisa que nos parece aquém do que deveria leve a considerar que está tudo errado. Há uma diferença entre percebermos que aquilo que existe foi uma conquista deste regime e querermos melhorar, e decretarmos que é tudo uma porcaria e que o regime falhou. Como, falhou?

Alguém se recorda de como era o sistema de segurança social da ditadura? Alguém sabe como viviam, de que viviam, os velhos que já não podiam trabalhar? Alguém sequer pergunta o que sucedia aos desempregados?

Não: tudo isso passou e está no passado como se o que há tivesse surgido por geração espontânea e não pela via das instituições democráticas, dos sucessivos governos eleitos, das propostas dos partidos, das lutas dos sindicatos.

Como se não se devesse tudo a essa coisa de que se fala com tanto nojo e desprezo - a política. A política e os políticos, isso a que políticos, tão ou mais políticos como os outros mas fazendo profissão de pretender não o ser, apresentam como uma coisa suja, inútil, a deitar fora, a substituir pelo seu discurso de “verdades” que mais não é que uma trapalhada de ódio e falsidades cozinhada para acicatar o descontentamento e festejar a ignorância.

Sim: por definição, a democracia não entusiasma quem vive em democracia. Não parece uma ideia salvífica - como pareceria a quem vive nela? - nem uma novidade atraente. É uma coisa da qual dizemos mal com muito mais ímpeto do que bem. Sendo um processo nunca terminado, que depende da mobilização coletiva para evoluir, e portanto da consciencialização dos seus defeitos e deficiências, estimula-nos à crítica permanente. Até porque, sendo um sistema no qual coexistem várias forças políticas e ideias em confronto e competição, é dessas críticas cruzadas que vive.

Haver de repente tanta gente em países democráticos a achar que a democracia não serve é, paradoxalmente, uma espécie de louvor à democracia - à completa incapacidade que temos todos (exceto os ditadores) de imaginar viver num sistema outro, e à fé que pomos na sua resiliência.

E é aí, claro, que nos enganamos: a democracia pode (se pode) ser destruída e só resistirá na medida em que estejamos dispostos a lutar por ela. É bom que nos aprontemos.

QOSHE - Saudades da ditadura - Fernanda Câncio
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Saudades da ditadura

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23.01.2024

“Os miúdos que nascem agora estão tão longe do 25 de Abril como nós estávamos da 1ª Guerra Mundial.”

Quem me disse isto nasceu em 1968, a exatos 50 anos do final do final da dita guerra - uma guerra que conhecemos nos livros e em alguns filmes, narrativa tão distante e onírica como o faroeste americano ou as invasões francesas. Foi a primeira vez que percebi, em vertigem de desalento e estupor, como é possível aquilo que me parece impossível: que haja, nas gerações mais novas, quem ache que uma ditadura não é uma coisa assim tão má, e que uma democracia não é uma coisa assim tão estimável. É que não fazem qualquer ideia da diferença; todas as suas vidas e referências estão imersas, ensopadas, no sistema democrático.

A começar pela facilidade com que o podem colocar em causa: que outro sistema político é tão dúctil e paciente perante quem o insulta e despreza, quem lhe vaticina, deseja e planeia o fim? Que outro sistema permite que qualquer pessoa se sinta à-vontade para caluniar os respetivos representantes, para os acusar de tudo e mais alguma coisa sem, as mais das vezes, qualquer consequência? Que outro sistema admite os ataques mais soezes e destrambelhados como forma de combate político e hesita tanto em puni-los, por tanto execrar a severidade e o silenciamento?

A essa ausência de noção do que seria viver-se em ditadura - que explica o enlevo com soluções “musculadas” em que que cada vez mais tropeçamos nas redes sociais e na retórica política mas também em........

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